Até onde estou sabendo, até a presente data, no ano de 2015, a versão de uso da biblioteca ainda é a versão oficial da Torre de Vigia – apesar da firme negativa da ONU de que não é necessário ser uma ONG para ter acesso à integra de tudo o que consta em sua biblioteca, mesmo que para casos especiais seja necessário um passe, que concede acesso a um conteúdo restrito, não disponível nas bibliotecas-depositárias espalhadas pela cidade de Nova York.
Para efeito de resumo, veja o que significa para a Torre de Vigia filiar-se como ONG às Nações Unidas:
Primeira nota emitida pela ONU em 11/11/01:
Ao aceitar a associação com o DPI, a organização aceitou preencher os critérios para associação, incluindo apoiar e respeitar os princípios da Carta das Nações Unidas e o compromisso de usar recursos para conduzir um eficaz programa com seus membros e a um público mais amplo acerca das atividades da ONU.
Segunda nota emitida pela ONU em 4/03/04:
Por aceitar a associação com o DPI, a Organização concordou em atender ao critério de associação, inclusive apoiar e respeitar os princípios e compromissos da Carta das Nações Unidas, e concordou em divulgar entre seus membros programas de informação efetivos e outros sobre as atividades da ONU.
Diante dessas declarações, não pode haver dúvidas de que a Torre de Vigia estava ciente, desde o princípio, de quais eram suas obrigações perante as Nações Unidas. Apesar disso, em sua nota de desligamento, a Torre de Vigia diz com convicção:
Mesmo assim, o Critério para a Associação das ONGs – pelo menos em sua mais recente versão – contém termos os quais não podemos aceitar. Quando descobrimos isso, imediatamente retiramos o nosso registro. Somos gratos por tal assunto ter sido trazido à nossa atenção.
Mas conforme foi verificado por Daniel de Carvalho, os critérios de que a Torre de Vigia agora dizia não poder aceitar eram os mesmos vigentes por ocasião da filiação à ONU, sendo que os principais são as citações acimas extraídas nas notas emitidas por aquela entidade política.
Que a Torre de Vigia, em resultado de reconhecer esses critérios, apesar de alegações contrárias, procurou segui-los, pode-se ver no fato de as suas publicações, por volta da década de 90, refletirem um conceito favorável à ONU. Além de artigos visando difundir os objetivos da ONU – um requisito da filiação – as próprias referências à ONU foram bem mais escassas na década de 90 em comparação com décadas anteriores. Por exemplo, no Wachtower Library 2013, a expressão “nações unidas” aparece 172 vezes nas edições da revista A Sentinela da década de 90. Esse número representa apenas 51% das ocorrências dessa expressão nas edições dos anos 80 (336 vezes) e apenas 61% das ocorrências nas edições dos anos 70 (284 vezes). Pelo visto, os redatores de A Sentinela, em não podendo fazer críticas severas às Nações Unidas, preferiram abster-se de fazer a ela referências. Foi em razão disso que o dossiê aqui muitas vezes citado diz com propriedade, já em sua conclusão:
Os redatores dessa época certamente tiveram diante de si uma estreita margem de manobra, produzindo artigos que pudessem satisfazer o DPI da ONU sem, no entanto, causar embaraços sérios nos leitores
Quanta vergonha para uma entidade religiosa que afirma prezar pela boa moral!
Respeito e apoio à Carta das Nações Unidas compõem outro critério de filiação que a Torre de Vigia diz não poder aceitar – apesar de que, por quase dez anos, manteve sua assinatura em documentos em que afirmava justamente o contrário.
Ao se manifestar publicamente em não estar de acordo com esses critérios, a Torre de Vigia está agindo de acordo com o posicionamento que exige dos seus seguidores, que é de se manterem distantes de qualquer situação que, de alguma forma, constitua envolvimento com a política.
O rigor com que a Torre de Vigia exige e fiscaliza a neutralidade política de seus seguidores foi bem enfatizado no começo deste capítulo. Em complemento disso, há na história recente um caso, por demasiadamente brutal, que ilustra até que ponto a Torre de Vigia está disposta a exigir lealdade nessa questão.
Isso aconteceu no país africano de Malauí durante as décadas de 60 e 70, e o cerne da questão era a obrigatoriedade de que cada cidadão deveria comprar um cartão de filiação política. Segundo Raymond Franz, Testemunhas de Jeová foram notificadas pela filial da Torre de Vigia que comprar tal cartão consistia em apoiar o governo de Malauí em detrimento do apoio ao Reino de Deus (Veja o capítulo 6 do livro Crise de Consciência).
As consequências dessa recusa, por parte das Testemunhas de Jeová, de comprar tal cartão de filiação foram amplamente descritas, com detalhes horripilantes, na literatura da Torre de Vigia – mas com a ressalva de que a atitude das Testemunhas ante o governo de Malauí era, sobretudo, uma decisão pessoal delas, em concordância com o desejo delas de apoiar unicamente o Reino de Deus.
Proclamadores do Reino, página 674.
Em Malaui, há um único partido político, e a posse de um cartão indica a qualidade de membro do partido. Embora as Testemunhas sejam exemplares no pagamento de impostos, em harmonia com suas crenças religiosas, elas declinam de comprar cartões do partido político. Fazer isso seria negar a sua fé no Reino de Deus. Por causa disso, em fins de 1967, com o incentivo de autoridades, bandos de jovens por todo o Malaui lançaram um ataque total contra as Testemunhas de Jeová, de obscenidade e crueldade sádica sem precedentes. Mais de mil mulheres cristãs devotas foram violentadas. Algumas foram despidas perante grandes turbas, espancadas com paus e punhos, e daí sexualmente agredidas por sucessivas pessoas. Enfiavam pregos nos pés dos homens e raios de bicicleta nas pernas e daí os mandavam correr. Por todo o país suas casas, móveis, roupa e alimentos foram destruídos.
De novo, em 1972, houve um renovado surto de tal brutalidade após a convenção anual do Partido do Congresso do Malaui. Nessa convenção foi oficialmente resolvido privar as Testemunhas de Jeová de qualquer tipo de emprego e expulsá-las de suas casas. Até mesmo apelos de empregadores que queriam manter esses trabalhadores de confiança foram em vão. Casas, plantações e animais domésticos foram confiscados ou destruídos. As Testemunhas foram impedidas de tirar água da fonte da aldeia. Grandes números foram espancados, violentados, mutilados ou assassinados. E sofriam contínuos escárnios e ridicularizações por causa de sua fé. Por fim, mais de 34.000 fugiram do país para evitar serem mortos.
A revista Despertai! de 22 de janeiro de 1976 procurou justificar para a opinião pública porque era legítimo o comportamento das Testemunhas de Jeová de Malauí.
É algo insignificante’, alguns talvez se inclinem a dizer. ‘Por que não compram tal carteira e evitam as dificuldades?’ Esse seria, com certeza, o proceder mais fácil. E se fosse simples questão de pagar algum imposto ou pagar para obter uma carteira ou cédula de identificação (tal como as testemunhas de Jeová em muitos países pagam e portam, em obediência às leis de seus respectivos países), elas não teriam nenhuma objeção a isso. Mas, a questão aqui envolvida atinge o próprio âmago de sua crença e posição cristãs. Cristo Jesus disse ao governador romano, Pôncio Pilatos: “Meu reino não faz parte deste mundo. Se o meu reino fizesse parte deste mundo, meus assistentes teriam lutado.” (João 18:36) Para as testemunhas de Jeová, começar a afiliar-se aos partidos políticos deste mundo seria negação aberta daquilo que afirmam crer e defender. Embora não desejem sofrer, aceitarão isto ou até mesmo a própria morte ao invés de serem infiéis a Deus e ao seu Filho
Não desejo entrar aqui na discussão quanto à legitimidade bíblica da decisão das Testemunhas de Jeová de Malauí. Mas é um fato que esse é um requisito para se tornar (e permanecer como) Testemunha de Jeová. Quantas delas, se é que há alguma, chegaram à conclusão, por pura e simples leitura da Bíblia, de que essa é de fato uma exigência divina, acredito que estamos longe de saber. Mas é inegável que a grande maioria delas, se não todas, assim agiram unicamente para estar em conformidade com entendimento que obtiveram na literatura da Torre de Vigia – ainda que todas elas acreditassem que, agindo dessa forma, estavam sendo leais ao próprio Deus.
Nisso cabe perguntar em que difere o caso das Testemunhas de Jeová ante o governo de Malauí do caso da Torre de Vigia em relação à ONU – de modo a serem encarados de modo diferente por aquela organização religiosa. Sabendo que o âmago das duas questões envolvia a assinatura de um acordo reconhecendo a legitimidade de um governo político, é incompreensível como a Torre de Vigia veio a considerar que era inaceitável, em Malauí, a assinatura desse acordo – mesmo diante das duras consequências para as Testemunhas locais, ao passo que, menos de 20 anos depois, em um caso parecido, ela própria, a Torre de Vigia, assina estar de acordo com os ideais da Carta das Nações Unidas, se comprometendo, inclusive, em promover seus interesses.
Mas é diante dessa aberração religiosa que começa a fazer sentido por que a Torre de Vigia retirou seu apoio à ONU tão logo foi descoberta. Mas isso não era suficiente, não limpava sua barra perante a opinião publica, uma vez que documentos comprovam sua filiação à ONU por quase dez anos. Era necessário mais, era preciso dizer que, por ocasião da assinatura desses documentos, nada constava que a fizesse estar comprometida com um órgão político. Também é diante disso que faz sentido por que, por quase quinze anos, a Torre de Vigia nunca sinalizou, em suas publicações, que esteve filiada à ONU. Ainda que justificasse essa filiação, procurando assim inocentar a si mesma, isso poderia gerar curiosidade e uma avalanche de pesquisas pela internet e junto aos órgãos públicos. Deixando como está, com uma simples nota explicativa como resposta a quem pergunte, a Torre de Vigia procura permanecer acima de qualquer suspeita. Ela sabe, no entanto, que a acusação contra ela está à disposição das Testemunhas, bem ali, ao alcance de um clique. Mas isso não a preocupa tanto, pois a mente das Testemunhas, de modo geral, já está condicionada a encarar todo tipo de acusação como sendo apenas meias-verdades ou totalmente mentirosas. É verdade que não Testemunhas podem ler sem represálias as acusações contra a Torre de Vigia, mas o que motivaria alguém não Testemunha a fazer essa investigação? Assim, é também diante dessa ignorância popular que a Torre de Vigia pode, sem maiores pudores, continuar a apontar o dedo para as religiões deste mundo como culpadas de cavalgar uma entidade política, fazendo assim um contraste entre ela e outras religiões – contraste este que, como vimos, só subsiste em razão da manutenção de um grave segredo.
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Veja aqui uma carta enviada por mim ao escritório da Torre de Vigia no Brasil, na qual concedo a ela a oportunidade de se explicar sobre as acusações aqui apresentadas.
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