As crenças de Russell eram basicamente um apanhado geral das crenças adventistas da sua época, com a diferença de que adotou – como cereja do bolo – a data de 1914. Por se tratar de uma data antibíblica e sem suporte na história, ela deveria ter sido rejeitada, ou pelo menos posta em suspense, quando ele e seus sucessores imediatos foram confrontados com as primeiras evidências de que se tratava de um erro. Mas não foi o que fizeram; antes, como que construindo sobre a areia, foi sobre ela que se ergueram sucessivas cavalgadas proféticas, inclusive a mais recente, que, segundo explica-se, a data é o ponto de partida para duas sucessivas gerações de ungidos que deve culminar com a volta de Cristo e o fim do mundo. E é sobre esse último conceito que jaz um dos mais incômodos espinhos que aflige as costelas da liderança atual. Uma vez que a religião decidiu, lá na década de 1930, que apenas 144 mil cristãos serão aceitos no céu, e que as cerca de 40 mil Testemunhas da época já completavam esse número, ficou claro que no céu não havia mais vaga e que somente seriam aceitos novos cristãos para compor o que chamam de “grande multidão” – o inteiro e único grupo de pessoas que deveria sobreviver ao Armagedom. Consequentemente, à medida que passavam as décadas, os cerca de 40 mil ungidos da década de 1930 foram diminuindo a cada ano, à medida que iam falecendo. Pela expectativa da liderança religiosa, esse decréscimo continuaria até a volta de Cristo, que deveria se dar antes que falecessem os últimos ungidos. Porém, inexplicavelmente a tendência se inverteu em 2006, quando o relatório anual revelou o primeiro aumento em décadas. Tendo diminuído sucessivamente dos cerca de 40 mil para cerca de 8500 até 2005, desde esse ano tem havido aumento e agora já totalizam mais de 15 mil ungidos – o que torna mais difícil explicar que os 144 mil de Apocalipse é o número limitado de pessoas que vão para o céu. Evidentemente, isso preocupa o Corpo Governante. Mas a autoridade religiosa procura mostrar-se tranquila e arranjou uma explicação no mínimo inusitada para o problema, como escreveu recentemente:
Em anos recentes, temos notado um aumento no número dos que comem do pão e bebem do vinho na Celebração da morte de Cristo. Isso é bem diferente do que vimos por muitas décadas, quando o número diminuía. Será que o aumento atual deve nos preocupar? Não. Vejamos alguns pontos importantes que devemos ter em mente. [...] Esse número inclui pessoas que por engano acham que são ungidas. Depois de um tempo, alguns que começaram a comer do pão e beber do vinho pararam. Outros, por terem problemas mentais ou emocionais, acreditam que governarão com Cristo no céu. Então, o número de participantes não indica com precisão a quantidade de ungidos na Terra (A Sentinela de janeiro de 2016, edição de estudo, páginas 25, 26; veja também a revista A Sentinela de 15 de agosto de 2011, página 22, que, além dos fatores citados agora, também acrescentou “anteriores crenças religiosas” como razão para alguém passar a tomar dos emblemas e apresentar-se como ungido).
A explicação do Corpo Governante até certo ponto faz sentido. Pois em uma dada porção considerável de pessoas, há sempre alguns com problemas mentais. Assim, naturalmente, não seria diferente entre as cerca de oito milhões de Testemunhas de Jeová. Porém, a explicação do Corpo Governante deixa de levar em conta que não se trata apenas de ua porcentagem dentre um número considerado, mas um aumento dessa porcentagem. Com isso, seria necessário um aumento exorbitante de pessoas desequilibradas entre as Testemunhas de Jeová para que pelos menos uma quantia significativa desses desequilibrados manifestassem o desejo de ir governar com Cristo. Tudo examinado, portanto, fica evidente que se trata de uma saída fácil, arranjada às pressas, ante o inesperado e desconfortável desafio que é o aumento de ungidos.
Mais adiante, porém, o Corpo Governante admite a possibilidade de que pelo menos alguns dos novos ungidos sejam de fato ungidos. E acrescenta:
Nos últimos dias, Jeová continua escolhendo pessoas para fazer parte dos 144 mil. Se ele decidir esperar até a parte final desse período para escolher alguns para esse privilegio, quem somos nos para questionar sua sabedoria? (Isa. 45:9; Dan. 4:35; leia Romanos 9:11, 16.) Devemos tomar cuidado para não agirmos como os trabalhadores insatisfeitos que reclamaram do modo como o dono do vinhedo lidou com os trabalhadores da 11ª hora. — Leia Mateus 20:8-15 (revista supracitada, página 26).
Como se ver, no final adverte que não devemos nos comportar como os trabalhadores insatisfeitos, que reclamaram do modo como Deus lidou os trabalhadores da 11ª hora. Porém, pelo que posso deduzir, dentre todas as Testemunhas de Jeová, apenas a liderança religiosa é que tem razões válidas para queixar-se do modo como Deus lida com os trabalhadores da 11ª hora, pois foi ela que proclamou por décadas que a chamada celestial havia-se encerrado por volta de 1930. E que demonstração mais clara de insatisfação não é levantar a suspeita de que os novos ungidos são, provavelmente, desequilibrados mentais? E é justamente por causa dessa suspeita levantada que circula informações de que alguns dos novos ungidos têm sido questionados quanto a se de fato são ungidos, coisa que os expõe a uma humilhação absolutamente desnecessária, sem contar ainda o falatório que circula à boca miúda.
A proibição de transfusão de sangue, ainda que ultimamente seja permitido o uso de hemoderivados, é outro assunto bem delicado. O Corpo Governante não tem conseguido apresentar argumentos satisfatórios para sustentar a proibição, e mesmo depois do ano 2000, quando deixou a critério das Testemunhas o uso, ou não, de hemoderivados, não conseguiu justificar com clareza por que continua proibido o uso do que chama de “componentes primários”. Segunda a revista A Sentinela de 15 de junho de 2000, páginas 29-31, o uso de hemoderivados é deixado à consciência de cada Testemunha porque a Bíblia não diz nada a respeito. Porém o que a Bíblia diz sobre “componentes básicos”, de modo que estes sejam expressamente proibidos e aqueles não? Essa inconsistência tem levado alguns a se perguntarem sobre qual é de fato a verdadeira razão de o Corpo Governante não extinguir de vez a proibição de transfusão de sangue. Especula-se que, caso isso aconteça, centenas ou milhares de Testemunhas decidam mover ações judiciais contra a liderança, em razão de que deixaram filhos, pais ou parentes vir a óbito – tudo em razão de desejaram se sujeitar a uma proibição que acreditavam fossem de origem divina.
Também o ostracismo imposto àqueles que, por alguma razão, deixam de ser Testemunhas de Jeová é algo que causa horror a muitas pessoas de fora, bem como também torna infeliz a vida de todos os envolvidos em casos de desassociações e dissociações; pois quem não é mais Testemunha e tem parentes na religião, dificilmente vai viver a vida como se nada de mais lhe tivesse acontecido. O laço familiar mantém muitos conectados à religião e, por mais que os familiares resistam, é muito difícil sufocar a dor imposta pela incomunicabilidade exigida pelos líderes. Isso cria em muitas famílias certa insatisfação com a liderança religiosa e isso não é nada bom para o ambiente social que chamam de “fraternidade internacional de irmãos” e de “paraíso espiritual”. Obviamente que o Corpo Governante está consciente disso; quanto a se essa consciência vai levá-lo a fazer ajustes nessa intepretação bíblica, resta saber. O certo é que outras lideranças religiosas, que embora também pratiquem a excomunhão, mas não isolam os excomungados, não são alvos da mesma insatisfação de que sofre a liderança das Testemunhas de Jeová.
O desafio mais recente é o escândalo envolvendo o modo como o Corpo Governante escolheu lidar com os casos de pedofilia em seu meio. Nada demais para a religião se tudo permanecesse oculto, pois isso, apesar de servir de cobertura à pratica da pedofilia, permitiria à liderança afirmar que consegue lidar eficazmente com o problema. Mas uma vez que mais e mais casos de pedófilos acobertados tem se tornado de conhecimento público, o Corpo Governante tem diante de si a grande ameaça de sofrer o que já sofreu a Igreja Católica – a sangria financeira em razão de vultosas indenizações pagas a pessoas que foram molestadas por membros da religião.
Algo não tão recente, mas persistente, é desânimo que abate a muitas Testemunhas de Jeová, embora não seja algo claramente reconhecido pelo Corpo Governante e até insistentemente negado mesmo por muitos que sofrem disso. A autoridade religiosa com certa frequência tem publicado artigos que ensinam como tratar da depressão e até recomenda que, em casos graves, um médico seja consultado. Mas no geral esses artigos apontam para uma época em que as doenças de qualquer natureza não mais existirão e que, portanto, é preciso perseverar até alcançar essa época – que será em breve. Mas é por aí que deve estar o problema. Muitas Testemunhas já estão há mais de dez anos divulgando isso a seus vizinhos, outras estão há bem mais tempo, 20 anos, 30 anos. Muitas outras são filhos e filhas de Testemunhas e já na fase de criança começaram a ouvir sobre um fim que viria em breve, mas que nunca vem. E agora, já adultos, além da ‘expectativa sempre adiada’, ainda sofrem com o trabalho de pregação que se tem tornado cada vez mais infrutífero (Provérbios 13: 12). Em adição a isso, vem sempre as cobranças por parte da liderança local, que, seguindo as orientações do Corpo Governante, procura manter todas as Testemunhas bem ativas no ministério, se possível, como pioneiros regulares (uma categoria de pregadores que precisa fazer por mês no mínimo 70 horas de atividade ministerial). A Testemunha que não trabalha e nem estuda, e não é pioneiro regular, é muito cobrada por isso, pois não estaria dando para Jeová “o seu máximo” e nem “o seu melhor”. Mesmo a Testemunha que trabalha ou estuda, ou que faz tudo isso, não está isenta de cobranças; se não pregar por pelo menos 10 horas por mês, logo é tida por “fraca”, e bem provavelmente receberá a visita dos pastores que desejarão saber dela “qual é o problema”. Em resultado dessas visitas, muitas Testemunhas intensificam sua atividade ministerial, indo de casa em casa com as outras Testemunhas, mas isso pouco adianta, não é algo que a Testemunha faz por prazer, mas apenas para se livrar das cobranças, e não é difícil imaginar que isso, em vez de melhorar, tende a piorar. Alie-se a isso o fato de que se tem tornado raros os pastores que realmente estão dispostos a cuidar da saúde espiritual das Testemunhas. Muitos deles, também vítimas do desânimo em razão de muitos fatores (dentre eles a sobrecarga de trabalhos burocráticos), têm renunciado aos cargos, e isso condiciona as coisas a tal ponto que pessoas jovens, despreparadas, têm sido promovidas a pastores – o que, por sua vez, ao lidarem com “as ovelhas” cada um ao seu jeito, geralmente cobrando delas mais atividade ministerial do que conseguem fazer, promovem ainda mais desânimo e uma insatisfação geral para com as lideranças da religião. Diante disso, tem ficado claro para muitas Testemunhas que a tão aclamada felicidade, que tanto embelezam a revista A Sentinela, aparenta ser algo muito ilusório, uma espécie de propaganda feita por alguém que deseja vender um produto que não possui.
Com o aprimoramento dos meios de comunicação, especialmente nos países desenvolvidos, mais e mais pessoas têm tido a oportunidade de entrar em contato com as crenças das Testemunhas de Jeová, e em especial nos últimos 15 anos, quando a religião criou seu próprio site. Isso, obviamente, deveria resultar em um aumento significativo do número de fiéis, mas, surpreendentemente, é justamente nesses países que a religião tem tido mais dificuldades em atrair novos membros. Isso fica evidente quando se examina os números liberados pela própria Torre de Vigia.
Nas imagens abaixo foram comparado o crescimento populacional e o crescimento de Testemunhas de Jeová em 23 países, tomando os dados de 2005 confrontados com os dados de 2015.
Uma olhada rápida os números, nota-se que nos últimos dez anos houve um elevado crescimento nos países latinos e africanos, mas crescimento baixíssimo em países europeus. Isso é uma evidência clara de que o acesso à informação não têm sido favorável à liderança religiosa. O que ocorre de fato nos países desenvolvidos é que mais e mais pessoas podem acessar um site de busca logo depois de receber uma visita de Testemunhas de Jeová. Quanto às próprias Testemunhas nesses países, quando em outros tempos lhes restavam apenas acreditar na autoridade religiosa, agora, ao menor sinal de dúvida, podem também acessar a rede e investigar um ou outro assunto, o que possibilita a que tome conhecimento de tudo aquilo que a autoridade religiosa considera como sendo mentiras propagadas pelos apóstatas.
Por enquanto não me é possível afirmar que o baixo crescimento na Europa é também devido a mais Testemunhas estarem deixando a religião, mas isso é uma possibilidade. Também é provável que, naquele continente, em resultado de se informarem mais sobre assuntos obscuros da religião, mais Testemunhas tem se empenhado menos no ministério de pregação e até cessado de fazer doações em dinheiro. Como as Testemunhas de outros continentes tem menos recursos para doar, isso tudo acaba por reduzir o dinheiro à disposição do Corpo Governante. Pode-se ver a evidência disso nas reduções de gastos que se tornaram cada vez mais frequentes, como mostra o próximo tópico.
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