Além disso, se o seu irmão cometer um pecado, vá mostrar-lhe o seu erro, somente você e ele. Se ele o escutar, você ganhou o seu irmão. Mas, se não o escutar, leve com você mais um ou dois, para que, com base no depoimento de duas ou três testemunhas, toda questão seja estabelecida. Se ele não os escutar, fale à congregação. Se não escutar nem mesmo a congregação, seja ele para você apenas como homem das nações e como cobrador de impostos.
Há tempos o Corpo Governante adotou o conceito de que quando Jesus se referiu “à congregação”, de certa forma ele estava dizendo que, posteriormente, quando a congregação cristã fosse formada, a “congregação”, isto é, os pastores dela, é que deveriam ser aqueles a quem caberiam a tarefa de julgar os fiéis, decidido eles sobre qual devia ser a penalidade desse ou daquele pecado, ou se não deveria haver punição alguma.
Como na parte final da declaração de Cristo lê-se que o transgressor, por não ter escutado nem mesmo a congregação, deveria receber o mesmo tratamento a que os judeus dispensavam aos cobradores de impostos e estrangeiros (“homem das nações”), o Corpo Governante entende que se trata de um pecado grave, do tipo que hoje é digno de excomunhão por parte das congregações das Testemunhas de Jeová. Com esse entendimento, a autoridade religiosa buscou entender qual era o tratamento que os judeus dispensavam aos “cobradores de impostos” e estrangeiros, pois isso, na concepção dela, deveria nortear o modo como as Testemunhas de Jeová hoje deveriam tratar os ex-irmãos de fé. As suas descobertas constam num artigo da revista A Sentinela de 15 de Dezembro de 1981, páginas 14 a 16, parágrafos 15 a 21).
Mas a respeito da declaração de Cristo registrada por Mateus, Raymond Franz escreveu o seguinte (os colchetes são dele):
Nas palavras em Mateus 18:15-18, Jesus não deixou prescrição de uma excomunhão organizacional. O fraseado indica uma ofensa e um castigo de natureza puramente pessoal. Mesmo após se referir à “congregação” (falando evidentemente da congregação judaica existente, pois ainda não existia a congregação cristã), Jesus disse: “seja ele para ti [singular] como um gentio ou cobrador de impostos”. Em vez de uma ação eclesiástica, imposta a toda uma congregação, trata-se de simples princípio que permite ao ofendido evitar, de modo digno e pessoal, o ofensor obstinado. O contexto anterior e posterior a estes versículos também apontam para isto (Em Busca da Liberdade Cristã, página 391).
Em comprovação disso, basta notar que o próprio Jesus Cristo não procurava saber o histórico das pessoas antes de fazer alguma coisa por elas e há até relatos de que ele curou pessoas, e até ressuscitou um morto, de forma inesperada, sem que estas sequer manifestassem interesse no que ele ensinava. (Marcos 9: 25-27; Lucas 7: 11-15; João 9: 1-7) Por exemplo, o capítulo 5 do evangelho de João relata que muitos deficientes se amontoavam próximo a uma fonte, à espera de uma cura que supostamente viria quando se jogassem na água assim que ela estivesse revolta. Chegando-se a essa fonte, Cristo curou um deficiente que esperava por isso há 38 anos. Pelo relato, deduz-se que esse deficiente era perfeitamente lúcido. Em vista disso, e em razão de que somos todos pecadores (e à vezes pecamos gravemente), esse homem, por toda a sua vida, pode ter prejudicado a alguns ou até muitas pessoas, mas que não se arrependeu do que fez e por isso, a julgar pelo conselho de Cristo em Mateus 18: 15-17, devia receber o mesmo tratamento que um cobrador de impostos ou um estrangeiro. Porém, Jesus Cristo primeiro não procurou saber se alguns de seus amigos tinham alguma queixa contra esse homem – para então curá-lo. Não, assim como em muitos outros casos, ele curou por amor ao ser humano, curou porque sentia a dor daquele homem tão debilitado pela doença. Ao que tudo indica, o amor de Cristo não era limitado, ou influenciado, pelo conceito, ou preconceito, de outros. O Corpo Governante faz um esforço para nos convencer de que esses milagres de Jesus Cristo justificam-se apenas pelo humanitarismo, tal qual pode fazer uma Testemunha de Jeová nos dias atuais, quando encontra um desassociado atropelado e, apenas por humanitarismo, presta os primeiros socorros ou chama por uma ambulância. Mas não parece ser esse o caso dos dias de Jesus Cristo; embora Cristo tenha orientado que alguém que se sentisse prejudicado por outro devia mostrar certo desprezo para com quem o prejudicou, nada indica que se fazia um anúncio, uma divulgação, para que todos da cidade dispensassem àquele o mesmo tratamento. É verdade que criminosos notórios, ladrões e prostitutas acabavam ganhando o desprezo de muitos; com isso, seus nomes naturalmente circulavam de boca em boca e com o tempo podiam perder todos aqueles que um dia lhes foram amigos. Isso é uma coisa natural do ser humano, embora a coisa mais apropriada seja que cada um lide com pecadores de acordo com seus conceitos pessoais, levando em conta não o pecador em si, mas apenas o quanto a prática do pecado pode ser prejudicial a outros. Porém não é isso que acontece nos dias atuais, nas congregações das Testemunhas de Jeová. Depois que se faz o anúncio de que “fulano não é mais Testemunha de Jeová”, o desprezo para com “fulano” pode vir de 100% das demais Testemunhas da comunidade, as quais se encarregarão de espalhar a noticia para todos os que lhes são conhecidos; no meu caso, os anciãos até pediram que quando fosse cumprimentado por uma Testemunha de Jeová, eu próprio devia me identificar como sendo desassociado. O resultado disso é que em pouco tempo “fulano” fica completamente isolado de todos os que lhe eram amigos.
Para aqueles que argumentam que pecadores conhecidos eram evitados sem exceção, talvez seja necessário relembrar o encontro de Jesus com a mulher samaritana à beira de um poço. As publicações produzidas pelo Corpo Governante salientam o quanto os samaritanos eram desprezados pelos judeus, embora naquela época os samaritanos tivessem basicamente as mesmas esperanças de um Messias assim como as tinham os judeus, sendo eles um povo misto, oriundo do tempo em que a Assíria devastou o reino do norte e trouxe estrangeiros para morar naquelas terras. Levando em conta a orientação de Cristo em Mateus 18: 15-17 e a interpretação que faz dela o Corpo Governante, seria de esperar que o próprio Jesus Cristo a pusesse em prática. No caso anterior, Jesus curou um deficiente sobre o qual nada se diz sobre o seu histórico; mas o caso da mulher samaritana é diferente. Depois de iniciarem uma conversa à beira do poço sobre a vinda do Messias, Jesus acrescentou:
Ele [Jesus] lhe disse: “Vá, chame seu marido e volte para cá.” A mulher respondeu: “Não tenho marido.” Jesus lhe disse: “Você está certa em dizer: ‘Não tenho marido.’ Pois você teve cinco maridos, e o homem que você tem agora não é seu marido. Você disse a verdade (João 4:16-18).”
Visto que nos dias de Cristo, conviver maritalmente com alguém já era aceito como um casamento legal (Mateus 1: 18-25), parece que o caso da mulher samaritana envolvia mais que isso, talvez sendo ela a concubina de um homem casado; qualquer que seja o caso, conviver maritalmente com alguém que não fosse legítimo cônjuge era algo condenado pelo Velho Testamento; quem quer que se encontrasse nessa situação, era digno de todo o desprezo dos judeus – quando não levavam a lei ao pé da letra e apedrejavam o pecador. No caso específico, a mulher que conversa com Jesus está na mesma situação de uma Testemunha de Jeová que foi desassociada e teve seu nome anunciado pelo microfone. Pelo que fica evidente do relato de João, os próprios discípulos de Cristo demostraram certo desprezo para com essa mulher. Mas Jesus não se importou com o conceito que tinham os judeus sobre essa mulher “desassociada”. Cristo sabia de seus pecados, mas não a humilhou por isso, bem como também não se importou sobre que conceito se formaria dele depois disso. Não é dito no relato se essa mulher é descendente de judeus ou de estrangeiros. Quaisquer que seja o caso, e levando em conta que o Corpo Governante entende que os desassociados merecem o mesmo desprezo que os judeus dispensavam aos estrangeiros, vale relembrar quem de fato pregava esse intenso ódio e desprezo para com pessoas de outras nações. A respeito disso, veja o que diz a própria literatura produzida pelo Corpo Governante:
Levítico 19:18 diz: “Não deves tomar vingança nem ter ressentimento contra os filhos do teu povo; e tens de amar o teu próximo como a ti mesmo.” Os líderes religiosos judaicos sustentavam que “os filhos do teu povo” e “o teu próximo” se referiam apenas aos judeus. A Lei exigia que os israelitas não se misturassem com outras nações. No entanto, ela não endossava o conceito promovido por líderes religiosos do primeiro século, a saber, que todos os não judeus eram inimigos a ser odiados (A Sentinela de 15 e abril de 2011, página 22).
Jeová ordenou que Seu povo se mantivesse separado das nações pagãs ao seu redor. (1 Reis 11:1, 2) Mas alguns líderes religiosos fanáticos incentivavam o povo a desprezar todos os não judeus. A Míxena até incluía a seguinte regra: “Não se deve deixar gado nas hospedarias dos gentios, pois se suspeita que pratiquem a bestialidade.” Esse preconceito generalizado contra todos os não judeus era injusto e totalmente contrário ao espírito da Lei mosaica. (Levítico 19:34) (Achegue-se a Jeová, página 152).
Como se comparava este conceito referente aos estrangeiros com a forma de adoração delineada na Lei mosaica? A Lei promovia manter-se separado das nações, mas isto tinha por objetivo proteger os israelitas, em especial sua adoração pura. (Josué 23:6-8) Mesmo assim, a Lei exigia que os estrangeiros fossem tratados com justiça e eqüidade, e que fossem recebidos com hospitalidade — enquanto não desobedecessem flagrantemente às leis de Israel. (Levítico 24:22) Os líderes religiosos dos dias de Jesus, por se afastarem do espírito razoável claramente evidente na Lei a respeito dos estrangeiros, produziram uma forma de adoração que gerava ódio e que era odiada. Por fim, a nação judaica do primeiro século perdeu o favor de Jeová. — Mateus 23:38 (A Sentinela de 1º de dezembro de1998, página 10).
Como se vê, segundo as próprias conclusões do Corpo Governante, os tratos que os judeus dispensavam aos estrangeiros eram promovidos, não pela lei mosaica, mas sim pela má interpretação que os líderes religiosos tinham dela. Como então pregam o Corpo Governante que os desassociados são merecedores desse mesmo tratamento, uma vez que o descreve como sendo “preconceito generalizado”, “injusto, e totalmente contrário ao espírito da Lei mosaica”? A atitude mais apropriada, ao que parece, era procurar ver como o próprio Jesus tratava essas mesmas pessoas, se se deixava guiar pelas tradições e costumes dos judeus ou se guiava apenas pelo que dizia a Lei de Moisés. Quanto ao exemplo de Cristo, quem é Testemunha de Jeová sabe o quanto o versículo de 1 Pedro 2: 21 é repetido na literatura bíblica produzida pelo Corpo Governante. Nesse versículo, Pedro nos indica que ‘Cristo deixou um modelo para seguirmos de perto os seus passos’. E no que toca a seguir o modelo de Cristo no assunto em questão, parece que atitude correta é que cada um trate os outros conforme seja a nossa relação pessoal com eles, não nos deixando guiar e controlar pelo conceito que outros têm de quem quer que seja.
Mas apesar de tudo o que foi dito até aqui, e com o objetivo de descartar o exemplo de Cristo como maneira correta de lidar com pecadores, o Corpo Governante procura fazer uma diferenciação entre os “cobradores de impostos” de seus dias e os classificados como “pecadores impenitentes” dos dias atuais, aqueles que, por uma ou outra razão, não são mais Testemunhas de Jeová. Assim, se justifica a autoridade religiosa:
No entanto, os esforços de Jesus para dar testemunho aos cobradores de impostos que ‘chegavam perto dele para o ouvir’ e ‘o seguiam’ não era modelo de como se devia tratar os pecadores impenitentes. (Mar. 2:15; Luc. 15:1) Como podemos ter certeza disso? Embora Cristo comesse com tais cobradores de impostos, o apóstolo Paulo ordenou que os cristãos não devem ‘nem sequer comer com’ tal pecador expulso da congregação. (1 Cor. 5:11) (A Sentinela de 15 de dezembro de 1981, já citada anteriormente).
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