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A desassociação

Como já foi mostrado nos subtítulos anteriores, somente depois de alguém tomar a decisão de ingressar na religião, é que se dá informações sobre outras questões, mas nem sempre com detalhes suficientes para tomar uma decisão consciente. A respeito da desassociação, acontece a mesma coisa. A pessoa talvez até ouça falar nesse assunto, talvez faça algumas perguntas, mas a resposta pode ser apenas que a Bíblia recomenda que se faça isso, mas sem dizer exatamente quais são as consequências para o desassociado, e nem como ela deverá se portar diante de alguém em tal condição. 

Observação: O mais novo livro de estudo, Seja Feliz para Sempre!, trás uma abordagem com uma certa clareza até surpreendente para os padrões da organização, conforme pode ser visto na lição 57.  Veja bem: lição 57 de uma lista de 60 lições; fica à página 239 de um livro de 260 páginas. É incrível como deixam para tratar de um assunto assim tão sério apenas nas páginas finais, mesmo considerando que há casos em que a pessoa é levada ao batismo muito antes de terminar o estudo do primeiro livro.





Se o estudante se mostrar muito interessado em ser Testemunha de Jeová, pode ser dado  a ele o livro Organizados para Fazer a Vontade de Jeová, para que se faça com ele a recapitulação e seja apresentado às perguntas finais do batismo. 

Como se trata apenas de uma “recapitulação”, é costume que o estudo desse segundo livro consista apenas em o iniciante responder à série de perguntas que consta na parte final. Mas caso o iniciante, por vontade própria, decida ler todo o livro, ele vai se deparar com o seguinte capítulo: “Como manter a paz e a pureza da congregação”. Nesse capítulo, em um ponto, o iniciante é diretamente envolvido na questão quando o assunto é resolver problemas de relacionamentos em que ele é diretamente prejudicado, portanto, não sujeito a nenhuma penalidade (Mateus 18:15-17). Curiosamente, porém, quando o livro fala abertamente sobre a desassociação em razão de pecados graves, refere-se ao pecador como alguém na terceira pessoa, obviamente, com o claro objetivo de não ofender o iniciante. Assim, este, em vez de se ver afetado pela punição, ver apenas o quanto a congregação está disposta a fazer para manter-se limpa de pecadores não arrependidos – algo que o iniciante estará propenso apenas a aplaudir. 

Se o estudante não leu a lição 57 do livro de estudos, e caso também não tenha lido detalhes sobre a desassociação no livro Organizados, então pode ser surpreendido com a seguinte pergunta de recapitulação:

Se for anunciado que alguém não é mais Testemunha de Jeová, como devemos tratar essa pessoa? 

=>> “Parem de ter convivência com qualquer um que se chame irmão, mas que pratique imoralidade sexual, ou que seja ganancioso, idólatra, injuriador, beberrão ou extorsor; nem sequer comam com tal homem.” — 1 Cor. 5:11. 

=>> “Se alguém vier a vocês e não trouxer esses ensinamentos, não o recebam na sua casa, nem o cumprimentem.” — 2 João 10

Organizados para Fazer a Vontade de Jeová, edição de dezembro de 2021.


Uma reação típica esperada aqui seria algo do tipo: Como assim?! Vocês expulsam pessoas?!

A respeito dessa pergunta, há que se questionar sobre como se pode falar de recapitulação se pode ser a primeira vez que o iniciante é exposto ao assunto? O interrogador poderia, em complemento da questão, perguntar se o iniciante está de acordo com essa doutrina. Mas deve-se lembrar que o questionário só está sendo feito porque o iniciante já foi convencido de que se trata da única religião verdadeira e está plenamente decidido a ingressar na religião; portanto, ele está totalmente manipulável, de fato incapaz de se posicionar contra o que quer que lhe seja exigido. 

O terceiro livro, Mantenha-se no Amor de Deus, foi preparado para ser estudado logo após a conclusão do estudo do livro O Que a Bíblia Realmente Ensina?, e o seu estudo é exigido mesmo para aqueles que se batizam ao final do estudo do primeiro livro. E é nesse livro que muitos leem, quando já estão há meses depois do batismo, aquilo que gostariam de ter lido bem antes de ingressarem na religião (negrito e itálico são dos autores). 


"Como tratar uma pessoa desassociada. Poucas coisas podem nos deixa tão tristes quanto ver um parente ou um amigo achegado ser expulso da congregação por ter cometido um pecado e não ter se arrependido. O modo como encaramos a orientação da Bíblia sobre esse assunto pode revelar a profundidade de nosso amor a Deus e quanto somos leais aos seus princípios. Considere algumas perguntas que surgem sobre esse assunto. [nota de rodapé referente à palavra “princípios”: Os princípios bíblicos sobre esse assunto se aplicam da mesma forma aos que se dissociam da congregação].
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"Como devemos tratar uma pessoa desassociada? A Bíblia diz: “Cesseis de ter convivência com qualquer que se chame irmão, que for fornicador, ou ganancioso, ou idólatra, ou injuriador, ou beberrão, ou extorsor, nem sequer comendo com tal homem”. (1 Coríntios 5: 11). Com respeito a qualquer pessoa que “não permanece no ensino do Cristo”, lemos: “nunca o recebais nos vossos lares, nem o cumprimenteis. Pois, quem o cumprimenta é partícipe das suas obras iníquas.” (2 João 9-11). Nós não nos associamos com desassociados, quer para atividades espirituais, quer sociais. A Sentinela de 15 de dezembro de 1981, página 21, disse: “Um simples ‘Oi’ dito a alguém pode ser o primeiro passo para uma conversa ou mesmo para amizade. Queremos dar esse primeiro passo com alguém desassociado?’
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"É realmente necessário evitar todo e qualquer contato com a pessoa? Sim, por várias razões. Primeiro, é uma questão de lealdade a Deus e à sua Palavra. Obedecemos a Jeová não apenas quando é conveniente, mas também quando envolve grandes desafios. O amor a Deus nos motiva a obedecer todos os seus mandamentos, reconhecendo que ele é justo e amoroso, e que suas leis visam o bem dos que o servem (Isaias 48:17; 1 João 5:3). Segundo, cortar o contato com o pecador não-arrependido evita que nós e a congregação sejamos corrompidos em sentido espiritual e moral, e preserva a boa reputação da congregação (1 Coríntios 5:6,7). Terceiro, nossa firme posição a favor dos princípios bíblicos pode até mesmo beneficiar o desassociado. Por apoiarmos a decisão da comissão judicativa, talvez contribuamos para tocar o coração de um pecador que até então não correspondeu aos esforços dos anciãos para ajudá-lo. Perder a preciosa associação com pessoas amadas talvez o ajude a ‘cair em si’, a ver a seriedade do seu erro e a tomar os passos necessários para retornar a Jeová – Lucas 15:17.
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"E quando o desassociado é um parente? Nesse caso, os laços achegados entre familiares podem ser um verdadeiro teste à lealdade. Como devemos tratar um parente desassociado? Não podemos incluir aqui toda e qualquer situação que possa surgir nesse sentido, mas vamos nos concentrar em duas situações básicas.
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"Em outros casos, o parente desassociado talvez não faça parte da família imediata ou seja um membro da família imediata que não mora na mesma casa. Embora em raras ocasiões se precise cuidar de um assunto familiar com um parente desassociado, tal contato deve restringir-se ao mínimo possível. Membros leais de uma família cristã não procuram desculpas para ter tratos com parentes desassociados que não more na mesma casa. Em vez disso, a lealdade a Jeová e à sua organização os faz seguir os princípios bíblicos relacionados com a desassociação. Seu proceder leal visa o bem do desassociado e pode ajudá-lo a se beneficiar da disciplina recebida (Mantenha-se no Amor de Deus, páginas 207-209).


Referente à questão familiar, essa política de desassociação praticada pelas Testemunhas de Jeová pode ter destruído milhares de famílias por todo o mundo. Mesmo assim, em um caso que pode afetar terrivelmente a família, o Corpo Governante procura ser o menos claro possível ao tratar do assunto enquanto o iniciante ainda não é batizado. Mesmo no livro citado acima, que geralmente só é estudado depois do batismo, o assunto ainda não é abordado claramente. Por exemplo, a norma diz que o desassociado, ou quem voluntariamente deixou a religião, não pode participar do estudo bíblico em família. Quando se trata de filhos menores, abre-se a exceção em razão da responsabilidade familiar, mas apenas na condição de um pai ensinado ao filho, o que significa dizer que não deve haver um saudável debate, em que ambos, pai e filho, procuram apresentar seus conceitos e juntos chegar a um consenso sobre o assunto. O inverso, quando o desassociado é um genitor, nem sequer é abordado, e há uma boa razão para isso. Considerando o estudo bíblico familiar, caso o genitor desassociado queira – por direito – entrar na discussão do estudo, os demais da família são obrigados a ignorar sua presença ou a dar o estudo por encerrado. Esse desprezo familiar é ainda mais emocionalmente devastador para quem decidiu sair (dissociar-se) da religião. Como isso geralmente acontece porque este descobriu os erros dela, é apenas natural que ele queira alertar seus familiares imediatos, e então esbarra na norma religiosa que o impede de orientar espiritualmente a sua própria família. 

Ainda a respeito desse assunto, o Corpo Governante considera que os pais, em razão da questão familiar, têm obrigação de ensinar um filho menor, ainda que este seja desassociado. Porém, sem nenhuma explicação, determina que os familiares (que inclui os filhos menores) não podem se deixar ensinar por um genitor se este deixar de ser Testemunha de Jeová. Que suporte bíblico há para esse conceito? Se a questão familiar prevalece de modo a obrigar os pais a dar educação religiosa aos filhos, esta prevalece ainda com mais força de modo a obrigar os filhos a escutar a educação religiosa dos pais, ainda que, de direito, possam escolher não segui-la. Essa distorção cria no lar a figura do genitor forte, quando este é Testemunha de Jeová, enquanto constrói a figura do genitor fraco, subordinado aos demais membros, quando este, por alguma razão, não pertence mais à religião. Tudo isso evidentemente serve muito bem a um objetivo: fazer prevalecer, pela força, a religião das Testemunhas, independente de questão familiar

Outro subproduto dessa norma religiosa é a relação pai-e-filho quando o filho, ainda que menor de idade, não aceita a religião dos pais. É apenas natural que o pai deseje a obediência do filho. No entanto, para o pai Testemunha de Jeová, essa obediência não só é desejável, mas também exigida como qualificação para este fazer carreira dentro da estrutura hierárquica da religião. (1 Timóteo 3: 1-7; Tito 1:5-9).  Tal situação pode deixar a família na desagradável situação em que, para que o pai possa usufruir normalmente dos cargos na congregação, ou o pai expulsa de casa o filho “rebelde”, quando este atinge a maioridade, ou esse filho voluntariamente sai de casa para não submeter o pai a ter que tomar uma atitude drástica ou privar-se dos cargos. (Em meus 20 anos como Testemunha de Jeová, tomei conhecimento de dois casos em que filhos foram expulsos de casa, mas não sei dizer exatamente quais foram os motivos; clique para ver mais em meu blog) Depois vem o caso de filhos desassociados ou dissociados vivendo fora de casa. Independente dos motivos que levou esse filho a viver fora de casa, sempre existe a questão do retorno ao lar. Para o pai Testemunha de Jeová que exerce algum cargo na instituição religiosa, a situação é demasiadamente constrangedora, pois este, caso decida aceitar o filho de volta, será reavaliado quanto a se ainda se qualifica para continuar usufruindo os cargos. A respeito desse assunto, veja o que diz o livro secreto, à página 47: 

Pastoreiem o Rebanho de Deus, edição de abril de 2020
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Dependendo das respostas a essas perguntas, o pai pode perder todos os cargos que ocupa na congregação. Tendo consciência disso, muitos pais têm preferido não aceitar de volta ao lar um filho ou filha que deixou de ser Testemunha de Jeová. 

Então, longe de casa, esses filhos se encontram então numa outra situação descrita no livro Mantenha-se no Amor de Deus – quando a comunicação deve ser reduzida ao mínimo necessário. 

Nessas condições, muitos pais têm recusado estar presente em ocasiões importantes para os filhos, como casamento e nascimento de um filho; outros pais nem sequer acompanham o crescimento dos netos, não atendem telefone, não respondem a mensagens. Os filhos, por sua vez, sabendo desse desprezo, acabam por não procurarem os pais nem em situações difíceis, como em dificuldades financeiras, doença ou falecimento do cônjuge. 




Mas infelizmente o oposto também acontece. Quando é um genitor que abandona a religião, os filhos costumam tratar os pais conforme a norma religiosa. Se ainda estão no lar, as conversas são reduzidas ao mínimo  necessário, em muitos casos deixa de haver cumplicidade, as amizades esfriam, e o genitor acaba por se sentir um estranho na própria casa. Se os filhos não moram mais com os pais, então praticamente cessa a relação familiar com o genitor que não pertence mais à religião. Este então, em muitos vasos, não terá mais notícias dos filhos, bem como também pode não mais ser convidado para festas e cerimônias de casamento e nem ser avisado sobre o nascimento dum esperado neto.

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Reino Unido (link acessado em 2016, mas agora indisponível).

Victoria Summers, 41 anos, deixou de ser Testemunha de Jeová há seis anos. Em resultado disso, seus pais cortaram todo o contato com ela e têm recusado todos os convites para conhecer a neta. Na foto ao lado, Summers, em um protesto solitário, deixa flores em frente a um Salão do Reino, em celebração do Dia Internacional das Vítimas da Torre de Vigia (nome comumente associado às Testemunhas de Jeová, em referência à associação legal usada pela religião).



Barbara Anderson, 
81 anos, foi Testemunha de 
Jeová por 44 anos, tendo sido 
desassociada em 2002. 


Desde então seu filho cortou toda a comunicação com ela, privando-a até de acompanhar o crescimento dos netos. Conforme conta em seu site, ela só possui a foto à direita porque a encontrou em uma página da internet. 

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É verdade que há exceções. Há alguns familiares, às vezes um pai, uma mãe, um filho, que decide não seguir a norma religiosa e continua mantendo relação de amizade com desassociados. Mas quanto a estes, o livro dos anciãos, às páginas 89 e 90, trás uma determinação expressa de como devem ser tratados: 



Pastoreiem o Rebanho de Deus, edição de abril de 2020.


O detalhe de uma comissão judicativa ser mencionada nesse contexto significa que tratar de assuntos espirituais com um desassociado pode levar a Testemunha a também ser expulsa da organização.

Muitas Testemunhas de Jeová, portanto, com relação à desassociação ou dissociação de um amigo ou parente, ficam entre a cruz e a espada, ou tomam o lado da Organização, às vezes às custas de muitas lágrimas, ou escolhem manter a amizade, sem se importar com possíveis sanções eclesiásticas. A maioria das Testemunhas tem preferido a primeira alternativa, com menos ou mais disposição, dependendo muito de quanta amizade tinha com o desassociado ou dissociado. 

Sobre todas as questões aqui abordadas, desde a questão do voto, a questão do sangue, a política de vigilância, a lealdade à Organização a qualquer custo e finalmente a desassociação, as Testemunhas de Jeová, em sua vasta maioria, tiveram um conhecimento mínimo quando foram conduzidas ao batismo; e mesmo agora, às vezes anos ou décadas depois, muitas delas ainda não tomaram consciência de que estão num estágio de total vulnerabilidade perante a autoridade religiosa. Convencidas de que essa autoridade é a legítima representante de Deus na Terra, elas deixam-se guiar para um lado e para outro, fazendo tudo o que determinam os líderes religiosos, ainda que, conforme passem os anos, esses líderes decidam que o que ensinaram por tanto tempo não era exatamente a coisa certa. Se dessa crença errada resultou em perdas de vidas ou em lares desfeitos, a julgar pelo passado, é muito improvável que a liderança religiosa venha a lamentar e pedir perdão. Apesar disso, é surpreendente que o Corpo Governante esteja disposto a executar a punição mais severa até mesmo em um recém-batizado. Este, por sua vez, caso ainda acredite nas doutrinas da religião, se sentirá, portanto, como que no corredor da morte. Assim, para muitos desassociados, fazer o caminho de volta é uma questão vital. O Corpo Governante sabe disso – e conta com isso como meio de reaver aquele a quem desassociou.  





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