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O direito de interpretar a Bíblia

Uma das coisas mais prezadas pelo cristão é a leitura da Bíblia Sagrada. As Testemunhas de Jeová têm orgulho de serem muito instruídas, nesse sentido, por sua liderança religiosa. Até alguns de seus opositores reconhecem que, dentre as religiões que professam o cristianismo, elas estão entre os que mais estão familiarizados com o conteúdo geral da Bíblia. Mas algo grave é escondido em tudo isso: a Testemunha de Jeová comum é estritamente proibida de fazer qualquer interpretação de qualquer parte da Bíblia, estando, portanto, obrigada a aceitar que o Corpo Governante a interprete por inteiro para ela. A confissão de que é exatamente assim apareceu, ainda que de forma atravessada, em uma revista A Sentinela de 1987. Leiamos: 

Os apóstatas [referente a ex-Testemunhas que se dedicam a expor o que consideram erros pregados pelo Corpo Governante] muitas vezes apelam para o egotismo, afirmando que temos sido privados de nossas liberdades, incluindo a liberdade de interpretar pessoalmente a Bíblia. (Compare com Gênesis 3:1-5.) Na realidade, esses indivíduos com pretensões a aviltar nada oferecem a não ser uma volta aos nauseantes ensinos de “Babilônia, a Grande”. (Revelação 17:5; 2 Pedro 2:19-22) (A Sentinela de 1º de novembro de 1987, página 19).

Só como exemplo, veja o meu caso: pelo tempo que permaneci nessa organização religiosa, dediquei muito tempo à leitura e estudo da Bíblia. No entanto, qualquer conclusão que eu tirava de minha leitura do livro sagrado era imediatamente submetida ao crivo da interpretação do Corpo Governante, mediante consulta constante à literatura elaborada por ele. Caso minha conclusão diferisse da oficial, essa era imediatamente descartada como errada.

Considerando a importância disso para os cristãos, uma vez que envolve a sua própria salvação, seria muito sensato que o Corpo Governante deixasse de modo bem claro, no seu livro bíblico de doutrinas básicas, que essa é uma condição indispensável para se tornar Testemunha de Jeová. Mas não é assim, e por motivos óbvios. 

Somente quando a pessoa toma a decisão de se tornar Testemunha de Jeová, quando então é apresentada ao segundo livro, é que o assunto é trazido à sua atenção, exatamente no terceiro capítulo do livro. Com o título “Lembrem-se dos que exercem liderança entre vocês”, baseado em Mateus 24: 45, o capítulo procura convencer o estudante de que Deus exige que se confie no Corpo Governante como Seu servo designado para cuidar do rebanho, o que inclui interpretar para este toda a Bíblia Sagrada. Mesmo isso não é dito de maneira explícita, não há nenhuma frase do tipo: ao se tornar Testemunha de Jeová, você automaticamente renuncia a seu direito de interpretar a Bíblia. Tudo é dito com eufemismo, como se a clareza, algo tão prezado por todas as pessoas, em absolutamente tudo, fosse, nesse caso, induzir a pessoa a tomar uma decisão errada – que seria não aceitar ingressar na religião. Para completar a ambiguidade do assunto, a prospectiva Testemunha nem sequer é avisada, nesse capítulo, que não concordar com uma interpretação bíblica fornecida pelo Corpo Governante é algo passível de desassociação, que se ela não se deixar convencer, será irremediavelmente levada perante um tribunal religioso. Somente no 14º capítulo, que trata da desassociação, há uma breve menção a impureza espiritual, que poderia ser entendido por alguns como discordância do Corpo Governante em questões de intepretação da Bíblia. Mas creio que ninguém diria que isso é dito de modo claro. No entanto, as informações tão sonegadas à prospectiva Testemunha, consta com clareza surpreendente em uma revista A Sentinela de 1986. Leiamos

Por que desassociaram (excomungaram) as Testemunhas de Jeová por apostasia a alguns que ainda professam crer em Deus, na Bíblia e em Jesus Cristo?... Os que expressam tal objeção salientam que muitas organizações religiosas que afirmam ser cristãs permitem conceitos dissidentes. Até mesmo alguns clérigos discordam de ensinos básicos da sua igreja, e ainda assim permanecem nas boas graças dela. Em quase todas as denominações religiosas da cristandade há modernistas e fundamentalistas que discordam grandemente entre si quanto à inspiração das Escrituras. Entretanto, tais exemplos não constituem nenhuma base para nós fazermos o mesmo. [...] A associação aprovada com as Testemunhas de Jeová requer a aceitação de toda a série dos verdadeiros ensinos da Bíblia, inclusive as crenças bíblicas singulares das Testemunhas de Jeová (A Sentinela de 1º de abril de 1986, página 30).

Como sempre, o Corpo Governante procura colocar as Testemunhas de Jeová à parte; faz isso por se referir às demais religiões consideradas cristãs pelo termo “cristandade” – como se as Testemunhas de Jeová também não professassem o cristianismo. Colocadas as coisas nesses termos – nós e eles, as Testemunhas e as demais religiões – a autoridade religiosa estabelece as condições para se permanecer como Testemunha de Jeová: “a associação aprovada com as Testemunhas de Jeová requer a aceitação de toda a série dos verdadeiros ensinos da Bíblia, inclusive as crenças bíblicas singulares das Testemunhas de Jeová”. Mas por “verdadeiros ensinos da Bíblia” entenda-se apenas a interpretação bíblica do Corpo Governante do que seja um verdadeiro ensino bíblico. A doutrina da Trindade é um exemplo disso. Para muitas religiões consideradas cristãs, a Trindade é um legítimo ensino bíblico, mas qualquer Testemunha de Jeová será excomungada se, de repente, passar a defendê-la. Também sofrerá a mesma punição aquele que deixar de crer que apenas 144 mil pessoas herdarão a vida celestial, pois, como dito anteriormente, esse é, segundo o Corpo Governante, um verdadeiro ensino bíblico

Como prova de que o Corpo Governante tem disposição de levar a cabo a excomunhão de todo aquele que resiste à sua autoridade, pode-se citar um caso que ocorreu na própria sede, nos Estados Unidos, no início da década de 80. Fazendo referência ao episódio, o livro Proclamadores do Reino, publicado pelo Corpo Governante em 1993, diz o seguinte (o segundo par de colchetes é dos autores): 

Mesmo em anos recentes, alguns indivíduos que ocupavam cargos destacados de supervisão demonstraram um espírito similar [eles questionavam, em particular, a legitimidade de algumas doutrinas da religião]... Naturalmente, essas pessoas por certo tinham a liberdade de crer no que desejassem. Mas, qualquer pessoa que publicamente ou em particular defende conceitos que divergem dos que aparecem nas publicações de uma organização, e que faz isso enquanto afirma representar essa organização, causa divisão. Como as Testemunhas de Jeová lidaram com essas situações?... Elas não lançaram nenhuma campanha de perseguição contra tais pessoas (ainda que os dissidentes muitas vezes recorreram a injúrias contra seus anteriores irmãos espirituais), tampouco procuraram causar dano físico a eles (como foi praticado pela Igreja Católica por meio da Inquisição). Em vez disso, seguiram o conselho inspirado do apóstolo Paulo, que escreveu: “[Ficai] de olho nos que causam divisões e motivos para tropeço contra o ensino que aprendestes, e que os eviteis. Pois homens dessa sorte são escravos, não de nosso Senhor Cristo . . . com conversa suave e palavras elogiosas seduzem os corações dos cândidos.” — Rom. 16:17, 18 (Proclamadores do Reino, página 629)

A autoridade religiosa, com o objetivo de colocar-se em luz favorável, procura contrastar-se com a Igreja Católica na questão da Inquisição. Para atingir esse objetivo, em resposta a pergunta do parágrafo anterior, diz apenas que as “Testemunhas de Jeová” ficaram de olho nos acusados de causar divisão; até mesmo muitas Testemunhas de Jeová não são capazes de entender exatamente o que se quer dizer com isso – tamanha a falta de clareza. No entanto, o fato é que cerca de uma dezena de Testemunhas foi excomungada sob a acusação de promover ensinos apóstatas. As consequências para essas foram a perda de toda a comunicação com anteriores companheiros de fé, o que incluiu, para alguns, o doloroso rompimento de laços familiares. 

Tudo isso aconteceu porque o Corpo Governante reservou unicamente para si a prerrogativa de interpretar a Bíblia Sagrada. Uma vez que as coisas são exatamente assim, por que será que a autoridade religiosa não é absolutamente clara sobre isso nos livros de estudo que visam formar um novo seguidor?

(sumário <> voltar <> avançar <> perfil do autor)



Comentários

  1. Verdade, e mesmo que a pessoa entre concordando com tudo também tem as constantes mudanças de entendimento.

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    1. É isso mesmo! A pessoa pode não concordar com a "nova luz", mas já assinou um "contrato" de fidelidade por meio do batismo.

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