Examinemos agora a validade bíblica do termo “corpo governante”.
Depois que foi escolhido o capítulo 15 de Atos para justificar sua própria existência, o Corpo Governante tem feito muitos esforços para provar que os primitivos cristãos se subordinavam aos apóstolos – tal qual um corpo governante.
Relacionado a isso está a pessoa do apóstolo Paulo, que é bem conhecido condo sendo um missionário para os gentios. Podemos começar nosso exame nos questionando se Paulo, ao ser designado como apóstolo, reconheceu a autoridade dos anciãos em Jerusalém como sendo uma espécie de quartel general, um escritório central, um centro administrativo, um local onde todas as comunidades cristãs, então espelhadas pelo império romano, estavam sujeitas – tal qual como se dá hoje, com todas as congregações de Testemunhas sujeitas a uma autoridade central.
Recordemos que o apóstolo Paulo, antes de se tornar cristão, fazia parte do grupo dos fariseus e era um dos que liderava a perseguição aos cristãos. Mas Deus viu em Paulo um coração zeloso de obras excelentes e, mediante uma manifestação milagrosa, o selecionou para ser um missionário cristão. Segundo a datação usada pela Sociedade Torre de Vigia, o incidente da conversão de Paulo, que está registrado no capítulo 9 de Atos, ocorreu, provavelmente, no ano 34 EC, um ano após a formação do suposto corpo governante, conforme relatado no capitulo 2 de Atos.
Então que fez o apóstolo Paulo logo depois de ser convertido? Foi ele orientado a ir imediatamente a Jerusalém com o fim de receber instruções? Isso seria lógico, se houvesse de fato um corpo governante funcionando em Jerusalém, pois dessa forma Deus salientaria a autoridade dos apóstolos tal qual defendida atualmente pelo Corpo Governante das Testemunhas de Jeová.
Mas Paulo, ao contar detalhes da sua conversão, escreveu o seguinte:
Mas, quando Deus, que causou o meu nascimento e me chamou por meio da Sua bondade imerecida, achou bom revelar o seu Filho por meu intermédio, para que eu declarasse às nações as boas novas a respeito dele, não fui imediatamente consultar homem algum; nem fui a Jerusalém, aos que eram apóstolos antes de mim, mas fui para a Arábia e depois voltei a Damasco. Então, três anos depois, subi a Jerusalém para visitar Cefas e fiquei com ele 15 dias. Mas não vi nenhum dos outros apóstolos, a não ser Tiago, o irmão do Senhor. Quanto às coisas que estou escrevendo a vocês, eu lhes garanto, perante Deus, que não estou mentindo (Gálatas 1: 15-20).
Como vimos, as palavras de Paulo são reveladoras quanto a se existia ou não um corpo governante em Jerusalém. Depois disso, somente encontramos Paulo uns dez anos depois, quando ele, que serve na congregação de Antioquia, é designado para sua primeira viagem missionária. Devemos nos lembrar agora quem hoje é diretamente responsável por enviar ao mundo os missionários formados na Escola Bíblica de Gielade, conforme relatado na consideração sobre Nathan Knorr. Com essa resposta, verifiquemos quem estava diretamente envolvido na primeira designação missionária de Paulo, se um corpo governante ou algo diferente:
Em Antioquia havia profetas e instrutores na congregação local: Barnabé; Simeão, que era chamado Níger; Lúcio, de Cirene; Manaém, que tinha sido educado com Herodes, o governador distrital; e Saulo. Enquanto estavam servindo a Jeová e jejuando, o espírito santo disse: “Separem-me Barnabé e Saulo para a obra a que os chamei.” Então, depois de jejuar e orar, eles lhes impuseram as mãos e os deixaram ir (Atos 13:1-3).
O relato não deixa dúvidas: não há nenhum corpo governante envolvido na primeira designação de Paulo como missionário. O mesmo pode ser dito das suas outras duas viagens, conforme relatado em Atos 15: 35,36 e Atos 18: 23.
Outro detalhe relacionado diz respeito a quem Paulo prestava contas ao final de suas viagens missionárias. Sabemos que atualmente todos os missionários enviados pelo Corpo Governante lhe prestam contas, seja diretamente a ele, seja por intermédio de seus representantes nas filiais em diversos países. Como seria de esperar, será que Paulo prestava contas aos apóstolos em Jerusalém?
No relato a seguir, Paulo presta contas de sua primeira viagem missionaria. Mas a quem?
Então passaram pela Pisídia, entraram na Panfília e, depois de proclamar a palavra em Perge, desceram para Atália. Dali navegaram para Antioquia, onde haviam sido entregues à bondade imerecida de Deus para a obra que agora tinham completado. Depois de chegarem e reunirem a congregação, contaram as muitas coisas que Deus tinha feito por meio deles e como ele tinha aberto para as nações a porta da fé. Assim, passaram bastante tempo com os discípulos (Atos 14: 24-28).
Nem na citação e nem no contexto, há qualquer referência aos apóstolos; estes, caso fossem um corpo governante, certamente achariam falta na atitude de Paulo, pois, dessa forma, como poderiam programar as futuras viagens desse missionário? Mas, conforme relatado anteriormente, as outras duas viagens missionárias foram feitas sem o requerimento de nenhuma orientação apostólica. E tal qual a primeira, o fim da segunda viagem missionária é muito revelador no que diz respeito a prestação de contas a um corpo governante:
Desceu a Cesareia. Subiu, cumprimentou a congregação [de Jerusalém] e então desceu para Antioquia (Atos 18: 22).
Ninguém diria que esse cumprimentar revela uma prestação de contas e nem sequer uma subordinação de qualquer natureza.
Subsequente a isso se dá a terceira viagem missionária de Paulo. O retorno dessa terceira viagem fornece detalhes que pode ser entendido como uma prestação de contas à congregação de Jerusalém. Leiamos:
Ao chegarmos a Jerusalém, os irmãos nos receberam com alegria. No dia seguinte, Paulo foi conosco encontrar Tiago, e todos os anciãos estavam presentes. Ele os cumprimentou e fez um relatório detalhado sobre as coisas que Deus tinha feito entre as nações por meio do ministério dele (Atos 21:17-19).
O Corpo Governante naturalmente faz uso desse trecho com uma clara intenção de salientar a autoridade dos apóstolos e anciãos de Jerusalém.
Assim, da mesma forma como alguns “anciãos” serviram a Israel em base nacional, assim também é patente que tais “anciãos”, junto com os apóstolos, formavam um corpo governante para a inteira congregação cristã, em todos os países. Numa data posterior, Paulo foi a Jerusalém e reuniu-se com Tiago e “todos os anciãos”, relatando-lhes os resultados do seu trabalho e recebendo seus conselhos sobre certos assuntos. — At 21:15-26 (Estudo Perspicaz das Escrituras, volume 1, página 130).
No entanto, como vimos anteriormente, um relatório quase idêntico foi feito à congregação de Antioquia. Não concluímos disso que lá existia um corpo governante; então por que deveríamos concluir que existia um em Jerusalém? Nós só somos informados dessas duas “prestações de contas”, mas pressuponho que, em cada congregação que Paulo chegava, um relatório como esses era feito aos irmãos. Eles certamente se importavam com os seus coadoradores espalhados pelo império romano; era apenas obvio que, ao receberem Paulo, eles o cercassem com muitas perguntas sobre seu trabalho e sobre como passavam os irmãos.
Em conclusão desse assunto, podemos dizer que o trabalho de Paulo como missionário de modo algum foi dirigido por um corpo governante em Jerusalém.
Que dizer do tão comentado evento registrado no capítulo 15 de Atos? Será que ele é prova de que os apóstolos exerciam autoridade sobre as demais congregações? Raymond Franz, em seu segundo livro, mostra qual foi a razão de Jerusalém ter sido a cidade apropriada para se tratar da polêmica envolvendo a circuncisão.
O relato de Atos, capítulo 15, mostra por que Jerusalém era o lugar lógico onde tratar deste assunto específico. Em ponto algum, o relato indica que Jerusalém era sede de algo como um corpo administrativo internacional. Ao invés, foi primariamente por ter a própria Jerusalém sido a fonte do desconcertante problema que Paulo e Barnabé tinham encontrado em Antioquia, onde serviam. Tudo estava relativamente calmo em Antioquia até que “homens de Jerusalém” desceram e causaram problemas, insistindo que os cristãos gentios deviam ser circuncidados e guardar a Lei. A congregação cristã tivera início em Jerusalém. A Judéia, com sua capital Jerusalém, era onde a firme adesão à guarda da lei prevalecia mais intensamente entre as pessoas que professavam o cristianismo. Essa atitude ainda perdurou por anos após a realização deste concílio especial. Os causadores do problema em Antioquia eram homens estabelecidos em Jerusalém. Estes fatores, não só a presença dos apóstolos, fizeram de Jerusalém o local natural para o debate e a solução desse problema específico. A presença dos apóstolos divinamente escolhidos era obviamente um fator de peso. Todavia, essa circunstância desapareceria à medida que os apóstolos morressem sem deixar sucessores — ninguém com dons e autoridade apostólicos. De modo que a situação em meados do primeiro século envolvia fatores que não eram de natureza permanente ou contínua, e assim eles simplesmente não são aplicáveis à nossa época (Em Busca da Liberdade Cristã, páginas 50 e 51).
Caso existisse de fato um Corpo Governante naquela época, era de se esperar que pelo menos se mantivesse como tal até o fim daquele século e começo do segundo enquanto a comunidade cristã se mantinha tal como fora estabelecida inicialmente. Assim, fica a pergunta: esse suposto corpo governante, com sede em Jerusalém ou em outras cidades, teve sua existência contínua ou foi apenas um encontro único, excepcional?
É de conhecimento geral que a Igreja Católica também se apoia nessa reunião apostólica para justificar os seus concílios. De fato, para a Igreja, os bispos são os sucessores legítimos dos apóstolos. Assim, com o fim de desacreditar a Igreja Católica, a revista A Sentinela publicou um artigo com o seguinte tema: “São os concílios religiosos aprovados por Deus?”. Recorrendo a uma citação, note só o que se escreveu (os colchetes são da revista):
Otto Karrer escreveu o seguinte a respeito dos concílios religiosos: “Com exceção do chamado Concílio Apostólico [por volta de 49 EC], cuja decisão faz parte da tradição da proclamação divina, apostólica, todos os concílios são produtos da igreja pós-apostólica. Não pertencem ao período da fundação da igreja.” — The Councils of the Church (A Sentinela de 15 de maio de 1986, página 26).
Dessa forma, o Corpo Governante, no seu intuito de desacreditar a Igreja, acabou por desacreditar a si mesmo, uma vez que, se por esse detalhe um não tem legitimidade, o outro também não.
Posto isso, resta o fato de que a autoridade religiosa das Testemunhas de Jeová defende a ideia indefensável de que existiu um Corpo Governante em Jerusalém e que agora usa todas as prováveis evidências para assegurar que decidiu corretamente. Tomado essa decisão, o Corpo Governante de Brooklyn passa a fazer afirmações categóricas a respeito de diversos assuntos, a meu ver, construindo um edifício sobre um alicerce que tem como garantia a única palavra do único interessado – o Corpo Governante.
Por exemplo, afirma que Paulo, na qualidade de missionário, era o representante do corpo governante. Essa conclusão alicerça-se no fato de que Paulo e Barnabé, juntamente com Judas e Silas, conduziram a carta, contendo o decreto dos apóstolos, para ser lida em Antioquia e cidades próximas. Nesse ponto, pode-se dizer que Paulo era emissário dos apóstolos (Atos 15: 24-27). Mas, como vimos anteriormente, no exame das viagens missionárias de Paulo, ficou claro que a decisão de iniciar a segunda viagem missionária foi acertada em uma conversa entre Paulo de Barnabé (Atos 15: 35 e 36). Se meu entendimento estiver correto, a partir desse ponto, não se pode dizer que Paulo e Barnabé passaram a viajar pela Ásia na qualidade de representantes dos apóstolos. Apesar disso, é com essa conclusão que o Corpo Governante faz a seguinte afirmação:
As congregações individuais aderiam de perto à direção do corpo governante cristão, o qual supervisionava a designação de anciãos. (Tit 1:1, 5) Era assim, conforme dirigidos pelo corpo governante cristão, sob a influência do espírito santo, que se designavam superintendentes, bem como ajudantes, servos ministeriais, para cada congregação. Os homens colocados nestes cargos de confiança e responsabilidade tinham de satisfazer qualificações específicas. (1Ti 3:1-13; Tit 1:5-9) Representantes viajantes do corpo governante, tais como Paulo, seguiam a Cristo e davam um excelente exemplo a ser imitado. (1Co 11:1; Fil 4:9) (Estudo Perspicaz das Escrituras, volume 1, página 542).
As cartas a Timóteo e a Tito foram escritas por Paulo. Jamais se poderia afirmar que “as congregações individuais aderiam de perto à direção do corpo governante cristão”, que o “corpo governante” estava envolvido na designação de “superintendentes” e “servos ministeriais”, se Paulo não escrevesse a Timóteo e a Tito na qualidade de representante de um corpo governante. Essa representação, a meu ver, falta ser provada. Mas tem que ser exatamente assim porque é assim que é hoje. Pois atualmente é o Corpo Governante que decide, mediante seus representantes, quem servirá como ancião ou servo ministerial. Deixar de dizer que Paulo não agia como representante de um corpo governante equivale a dizer que uma Testemunha influente, por vontade própria, pode designar supervisores em tal e tal congregação. Assim, não importa muito quanta evidência há de que Paulo representava uma autoridade central; essa afirmação tem que ser feita para assegurar o poder administrativo da autoridade central dos tempos modernos.
Novamente, a revista A Sentinela, no ano de 2009, visando salientar a autoridade dos apóstolos, trouxe as seguintes palavras.
Paulo e Barnabé, sob a direção do espírito santo, foram enviados como missionários pela congregação de Antioquia. Eles também se tornaram conhecidos como apóstolos, apesar de não estarem incluídos entre os 12 originais. (Atos 13:1-3; 14:14; Gál. 1:19) Sua designação foi confirmada pelo corpo governante em Jerusalém. (Gál. 2:7-10) (A Sentinela de 15 de junho de 2009, página 22).
Será que aos apóstolos foi dado poder para decidir pela aprovação ou não das ações de nosso Senhor Jesus Cristo? Será que a continuação do trabalho missionário de Paulo estava a depender da aprovação dos apóstolos? O que diz exatamente os versículos citados? Leiamos:
Pelo contrário, quando viram que eu tinha sido incumbido das boas novas aos incircuncisos, assim como Pedro tinha sido aos circuncisos — pois aquele que deu a Pedro os poderes necessários para um apostolado aos circuncisos deu também a mim poderes para com os que são das nações —, e quando reconheceram a bondade imerecida que me tinha sido concedida, Tiago, Cefas e João, os que pareciam colunas, estenderam a mim e a Barnabé a mão direita em sinal de parceria, para que nós fôssemos às nações, mas eles aos circuncisos. Pediram apenas que nos lembrássemos dos pobres, e isso eu também tenho me esforçado muito para fazer (Gálatas 2: 7-10).
Fica muito evidente que os apóstolos não podiam ter dúvidas de que Paulo havia sido designado diretamente por Jesus Cristo, que seu campo missionário era entre os gentios assim como o campo judeu fora designado a Pedro. A ação dos apóstolos em dar a Paulo e a Barnabé “a mão direita em sinal de parceria”, pelo que me parece, não pode ser entendida como se a designação de Paulo, feita diretamente por Cristo, estivesse sujeita a aprovação de homens. Pelo que entendo, os apóstolos apenas puderam dar apoio à designação de Paulo, aceitando-o como parceiro, passando a trabalhar em harmonia com as claras evidências de que Cristo estava orientando o trabalho de evangelização.
Em conclusão, assim como toda a interpretação bíblica para as Testemunhas de Jeová é oriunda de um corpo central com sede nos Estados Unidos, supostamente porque é o modelo bíblico, seria de se esperar que toda a matéria escrita para o Novo Testamento tivesse sua origem em um corpo central em Jerusalém. Mas será que foi exatamente assim? Sobre isso, leiamos o que escreveu Raymond Franz:
Toda a Escritura Cristã, com exceção da carta de Tiago (e possivelmente o evangelho de Mateus) foram evidentemente escritos em outro lugar. Não há nada, nem a menor evidência, de que Paulo, Pedro, João ou quaisquer outros submetessem seus escritos à aprovação de um “corpo central de ensino” ou estivessem de algum modo sujeitos à autoridade deste corpo (Em Busca da Liberdade Cristã, página 546,547).
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