Todo aquele que vai além dos ensinamentos do Cristo e não permanece neles não tem Deus. Quem permanece nesses ensinamentos é quem tem tanto o Pai como o Filho. Se alguém vier a vocês e não trouxer esses ensinamentos, não o recebam na sua casa, nem o cumprimentem. Pois quem o cumprimenta participa das suas obras más.
Depois de considerar que o apóstolo João acima proíbe até mesmo cumprimentar uma ex-Testemunha, o Corpo Governante escreveu resumidamente:
Todos sabemos de experiência no decorrer dos anos que um simples “Oi” dito a alguém pode ser o primeiro passo para uma conversa ou mesmo para amizade. Queremos dar este primeiro passo com alguém desassociado? (A Sentinela de 15 e dezembro de 1981, página 21).
Mas foi em 1985 que a autoridade religiosa procurou argumentar com mais detalhes por que entende que Testemunhas de Jeová não podem cumprimentar ex-integrantes da religião (na citação abaixo, o segundo par de colchetes é dos autores).
João acrescentou: “Pois, quem o cumprimenta é partícipe das suas obras iníquas.” [segundo a versão de 1986 da Tradução do Novo Mundo] (2 João 11) João usou aqui a palavra grega de saudação khaí·ro em lugar da palavra a·spá·zo·mai, encontrada no versículo 13.
Khaí·ro significa alegrar-se. (Lucas 10:20; Filipenses 3:1; 4:4) Era também usada como saudação, verbal ou por escrito. (Mateus 28:9; Atos 15:23; 23:26) A·spá·zo·mai significa “envolver nos braços, por conseguinte saudar, dar boas-vindas”. (Lucas 11:43; Atos 20:1, 37; 21:7, 19) Qualquer das duas palavras podia ser uma saudação, mas a·spá·zo·mai talvez denotasse mais do que um cortês “olá” ou “bom dia”. Jesus disse aos 70 discípulos para não a·spá·se·sthe a ninguém. Indicou assim que sua obra urgente não lhes permitia tempo para o cumprimento à moda oriental, com beijos, abraços e longa palestra. (Lucas 10:4) Pedro e Paulo exortaram: ‘Cumprimentai-vos [a·spá·sa·sthe] uns aos outros com beijo de amor, ou beijo santo.’ — 1 Pedro 5:14; 2 Coríntios 13:12, 13; 1 Tessalonicenses 5:26.
Portanto, João pode ter usado deliberadamente khaí·ro em 2 João 10, 11 em vez de a·spá·zo·mai ( versículo 13). Se assim for, João não estava exortando os cristãos daquele tempo a evitar meramente saudar calorosamente (com abraço, beijo e conversa) uma pessoa que ensinasse falsidades ou que renunciasse à congregação (apostatasse). Em vez disso, João disse que não deviam nem mesmo cumprimentar tal pessoa com khaí·ro, um comum “bom dia”.
A seriedade deste conselho evidencia-se nas palavras de João: “Quem o cumprimenta é partícipe das suas obras iníquas.” Nenhum cristão verdadeiro desejaria que Deus o encarasse como partícipe de obras iníquas por associar-se com um transgressor que foi expulso ou com alguém que rejeitou a congregação Dele (A Sentinela de 15 de julho de 1985, página 32).
Como se pode ver, o Corpo Governante recorre ao grego bíblico para justificar sua posição em relação ao assunto. Obviamente, são raras as Testemunhas de Jeová que conhecem o grego bíblico de modo a fazer um julgamento razoável da informação, quer a favor ou contra. A vasta maioria das Testemunhas simplesmente nada tem a dizer diante desse show de erudição.
De modo geral o texto procura salientar que a palavra grega khaí·ro é de uso mais corriqueiro, para os cumprimentos comuns do dia-dia, como “bom-dia”, “boa-tarde” e “olá”, ao passo que a·spá·zo·mai é de uso mais seletivo, mais reservado a demonstrações efusivas de afeto, saudações mais carinhosas, mais fraternais. Com isso, a revista conclui que, uma vez que João usou a palavra khaí·ro, então ele bem provavelmente quis dizer que ex-irmãos não são dignos nem de um khaí·ro, isto é, nem um “bom-dia” ou um “olá”.
Mas salta à vista que a conclusão é baseada apenas em uma tênue evidência, como pode ser visto a seguir:
Qualquer das duas palavras podia ser uma saudação, mas a·spá·zo·mai talvez denotasse mais do que um cortês “olá” ou “bom dia”.
Portanto, João pode ter usado deliberadamente khaí·ro em 2 João 10, 11 em vez de a·spá·zo·mai ( versículo 13). Se assim for, João não estava exortando os cristãos daquele tempo a evitar meramente...
É com base nessa tênue evidência que a autoridade religiosa proíbe a que as Testemunhas de Jeová dirijam um simples “bom-dia” a ex-irmãos. Parece-lhe isso razoável?
A revista também, para o propósito de reforçar a sua conclusão, decidiu omitir um detalhe desfavorável. Ele consta no primeiro capítulo do evangelho de Lucas e indica para nós que as palavras gregas para cumprimento podem ser intercambiáveis, isto é, podem ser usadas uma ou outra, que não há assim tanta diferença entre elas.
Para facilitar a compreensão do leitor, cito a seguir partes da The Kingdom Interlinear Translation of the Greek Scriptures, que foi produzida pelo próprio Corpo Governante e que apresenta uma tradução literal do grego para o inglês.
Na imagem acima consta a citação dos versículos 9-13 da segunda carta de João. Note que no versículo 10 está assinalada a palavra khaí·ro; no versículo 13, a palavra a·spá·zo·mai. Pelo argumento da revista A Sentinela, essas palavras têm sentido diferentes, portanto, seria impróprio intercambiá-las em uma frase. Ainda no que diz respeito à citação anterior, o uso da palavra a·spá·zo·mai parece apoiar a argumentação do Corpo Governante, pois é usada em uma saudação cristã, como mostrado abaixo:
Os filhos da sua irmã, a escolhida, mandam-lhe saudações.
Por que será que João usou uma palavra diferente para enviar um cumprimento cristão? Por que não usou a mesma palavra nos dois versículos, quer khaí·ro, quer a·spá·zo·mai? Lembre-se que é nesse questionamento que reside a argumentação do Corpo Governante.
Agora observe o uso das duas palavras pelo evangelista Lucas – a citação que o Corpo Governante omitiu em sua explicação:
Entrando onde ela estava, o anjo lhe disse: “Olá, altamente favorecida, Jeová está com você!” Mas ela ficou profundamente perturbada com as palavras dele e tentava entender o que poderia significar essa saudação (Lucas 1: 28,29).
Como se pode ver, Lucas parece não ter considerado que essas palavras tinham sentidos tão diferentes, pois as usou para descrever a mesma situação. Omitir esse detalhe possibilitou os autores do artigo a se servir do fato de que o apóstolo João usou khaí·ro e a·spá·zo·mai no mesmo contexto, mas para situações diferentes. Caso tivesse citado Lucas, a revista ficaria com a embaraçosa responsabilidade de justificar que na segunda carta de João não se tratava do mesmo caso, que João não podia ter invertido o local das palavras.
Outro fato que precisa ser levado em conta é que a segunda carta de João ordena a que não se cumprimente o “anticristo”, ou alguém que nega a Cristo, que nega que ele é o filho de Deus, alguém que voluntariamente renuncia ao cristianismo como sendo o caminho da salvação (1 João 2: 22-25). Por esses termos, como as Testemunhas de Jeová consideram-se que compõem a única religião verdadeira, que são o caminho para Deus nos tempos modernos, é apenas lógico que elas raciocinem que não podem cumprimentar quem voluntariamente abandonam a religião (os dissociados, ou, em outro termo: “anticristos”). Mas o Corpo Governante vai mais além e determinou que desassociados também não devem ser cumprimentados.
Depois de explicar que khaí·ro não é um termo de saudação menos caloroso, mas que também denota algo como alegrar-se com alguém, desejar paz a este e, por conseguinte, sucesso na empreitada, e levando em conta as palavras de João em consideração, Raymond Franz escreveu:
Claramente, pois, o que o cristão nega a um anticristo não é um simples cumprimento como “bom dia” ou “como vai”, e sim a saudação que implica em aceitar sua pessoa e concordar com sua causa, desejando-lhe favor e êxito. “Dar-lhe boas vindas” deste modo sem dúvida tornaria a pessoa “partícipe das suas obras iníquas”. Por outro lado, simplesmente falar com alguém não implica, em si, em aceitação, concordância ou favor. É o que a pessoa diz que determina isto. Certamente alguém não se torna parceiro de outrem nas coisas más que faz quando se esforça em refutá-lo ou convencê-lo de que está errado. Ao contrário, as Escrituras mostram que isto pode ser um dever cristão (Em Busca da Liberdade Cristã, páginas 406, 407).
Como visto, a argumentação do Corpo Governante para proibir a que as Testemunhas de Jeová conversem com ex-irmãos não tem nenhuma base bíblica. Pelo exame do modo como Jesus tratou os pecadores de seus dias, tiramos uma grande lição de como tratar os pecadores que nos cercam. Por esse exame, depois de uma leitura atenta dos evangelhos, ficamos sabendo que os pecadores dos dias de Cristo se sentiam livres para se chegar até ele, porque aos poucos ganharam a certeza de que não seriam menosprezados assim como eram menosprezados e humilhados pelos líderes religiosos da época. Esse, porém, não é o modelo que o Corpo governante deseja seguir; antes, deseja seguir a interestação que fez das cartas de Paulo e de João, que aparentam dizer que pecadores devem ser excluídos da conivência social com os cristãos, não sendo permitido nem sequer trocar com eles alguns cumprimentos – tal qual acontecia no primeiro século, cujo modelo foi estipulado pelos líderes religiosos para colocarem-se numa áurea de santidade, separados do povo comum, separados dos cobradores de impostos, dos estrangeiros, das prostitutas e pecadores de modo geral. Mas há algo mais que precisa ser dito sobre isso: todos nós temos a liberdade de escolher a quem ter como exemplo. E o Corpo Governante fez a sua escolha.
Para informações mais detalhadas sobre o assunto, veja o capítulo 10 do livro Em Busca da Liberdade Cristã, de Raymond Franz.
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