Pelo que se leu em parágrafos anteriores, ficamos sabendo com quanta ênfase a Torre de Vigia exorta às Testemunhas que não devem ler nada produzido pelos considerados apóstatas. Mas uma Testemunha de Jeová dificilmente dirá que age assim a mando da autoridade religiosa, mas antes, dirá que o faz porque assim ordena a Bíblia.
Relembrando o que foi dito no começo deste capítulo, é um fato que o Corpo Governante considera que a religião liderada por ele é a continuação do cristianismo do primeiro século. Deste modo, portanto, o que os apóstolos e discípulos de Cristo escreviam a respeito de quem se desviava do Caminho e se tornava apóstata é agora tomado como se aplicando diretamente àqueles que deixam a religião das Testemunhas de Jeová e procuram, a partir de então, expor as falhas dela – o que, no conceito do Corpo Governante, não é nada mais que perseguição religiosa, assim como o era os ataques sofridos pelos primeiros cristãos.
Quanto a esse conceito da autoridade religiosa, é preciso levar em conta tudo o que já foi aqui analisado a respeito dela. Feito isso, a conclusão a que chegamos é que não há nada que diferencia essa religião de tantas outras denominações cristãs, grandes e pequenas, novas e antigas. Até onde tenho conhecimento, em todas elas é possível encontrar uma porção de ensinos genuinamente cristãos, bem como tantos outros distorcidos ou completamente errados. Considerando isso, vale recordar a parábola do joio e do trigo contada por Jesus Cristo (Mateus 13:24-30; 36-43). Segundo a intepretação dele próprio, nos últimos dias estaria os cristãos verdadeiros espalhados por toda a parte, misturados a falsos cristãos; é verdade que ele disse que enviaria seus anjos para fazer a separação, mas não vejo nenhuma evidência de que esteja fazendo isso agora e ajuntando-os em religião A ou B – o que, por sua vez, não me permite aceitar que essa ou aquela liderança religiosa comporte-se como se fosse detentora do caminho da salvação e que condicione a aproximação a Cristo a que se trilhe tal caminho.
Posto isso, examino agora parte da segunda carta de João, a principal declaração bíblica usada pelo Corpo Governante com o intuito de coibir a que as Testemunhas entrem em contato com ideias consideradas apóstatas. Veja então um uso que se faz dessa parte da carta de João:
O apóstolo João orientou os cristãos a não acolherem apóstatas na sua casa. Ele escreveu: “Se alguém se chegar a vós e não trouxer este ensino, nunca o recebais nos vossos lares, nem o cumprimenteis. Pois, quem o cumprimenta é partícipe das suas obras iníquas.” (2 João 10, 11) Evitarmos todo o contato com esses opositores nos protegerá do seu modo corrupto de pensar. Expor-nos aos ensinos apóstatas divulgados pelos diversos meios de comunicação moderna é tão prejudicial como acolher o próprio apóstata na nossa casa. Nunca devemos permitir que a curiosidade nos leve a tal rumo calamitoso! — Provérbios 22:3 (A Sentinela de 1º de maio de 2000, página 10).
Também é nessa parte da segunda carta de João que a Torre de Vigia fundamenta a norma que proíbe a que Testemunhas cumprimentem àqueles que foram excomungados ou dissociaram-se da religião (Quanto a se essa argumentação é válida, veja o capítulo 7).
Agora quanto a se é possível aplicar as palavras de João a escritos religiosos nos termos em que estabelece a Torre de Vigia, é preciso lembrar o que o próprio João escrevera em sua primeira carta a respeito dos escritos religiosos que circulavam por aquela época:
Amados, não acreditem em toda declaração inspirada, mas ponham à prova as declarações inspiradas para ver se elas se originam de Deus, pois muitos falsos profetas saíram pelo mundo afora (1 João 4: 1).
O apóstolo João escreveu essas palavras perto do fim do primeiro século, quando as cartas de Paulo, de Tiago e de Pedro, bem como os evangelhos e o livro de Atos, podiam todos estar circulando pelas diversas congregações então existentes. Juntamente com essas cartas e livros divinamente inspirados que chegaram aos nossos dias, João nos informa que “muitos falsos profetas” também estavam em atividade e, evidentemente, também podiam estar escrevendo livros e cartas, com claras – e não tão claras – distorções da genuína verdade cristã. E que exortação deu ele aos seus leitores? Disse-lhes que deveriam olhar a capa de um livro, identificar algum logotipo e, feito isso, julgar o conteúdo como divinamente inspirado ou apóstata? Absolutamente não, pois isso era impossível para aquela época. Os cristãos foram claramente exortados a examinar os escritos para ver se de fato fundamentavam-se em princípios divinos já conhecidos, bem como se estavam em harmonia com cartas e livros anteriores, cuja origem divina já havia sido estabelecida por eles. Isso nos remete às palavras de Lucas a respeito de como se comportaram os bereianos ante o que ouviam do apóstolo Paulo:
Estes tinham mentalidade mais nobre do que os de Tessalônica, pois aceitaram a palavra com vivo interesse, e examinavam cuidadosamente as Escrituras, todo dia, para ver se tudo era assim mesmo (Atos 17:11).
É lógico que a Torre de Vigia considera que fazer esse exame é apropriado apenas para recém-interessados, ou para pessoas de outras religiões (esse posicionamento ficou bem esclarecido no primeiro capítulo). Ela própria faz exatamente o contrário: ao passo que desaconselha a que as Testemunhas examinem com olhar crítico a sua literatura, procurando decidir se tudo ali está de acordo com as Escrituras, dentre mais de uma centena de livros “sagrados” escritos nos primeiros séculos, ela ousou julgar quais são inspirados e quais são apócrifos (ou apóstatas). É verdade que adotou como sagrado uma lista de livros já adotados como tal pelo movimento protestante, mas isso não altera em nada o fato de que ela os julga como sagrados ao passo que expõe em sua literatura as razões de não aceitar os demais livros que constam na versão católica da Bíblia. Em nada disso ela está errada, pois segue exatamente a recomendação que consta na primeira carta de João (capítulo 4, versiculo1). Considerando que ela assim ousa julgar tais livros pelo seu conteúdo, como então proíbe – sob ameaça de punição – a que seus seguidores façam o mesmo com a mera interpretação que ela faz da Bíblia?? A julgar por esse proceder, deveríamos ter pelo menos um versículo bíblico em que um apóstolo determinasse de forma explícita que cabia a eles, os apóstolos, decidir quais cartas ou livros eram sagrados. Mas nada disso lemos nas Escrituras; antes, ela é bastante explícita em afirmar que cabia a cada cristão julgar toda e qualquer carta, não à base de um logotipo ou autoria, mas à base do seu conteúdo.
E no que diz respeito a seguir a recomendação cristã de julgar um livro ou uma carta unicamente por seu conteúdo, isso é válido para todos os cristãos dos dias atuais, e inclui inclusive os livros e cartas que compõem a Bíblia Sagrada. Isso se dá pela razão de que as muitas traduções e versões disponíveis têm cada uma delas muitas variantes de sentidos em sua fraseologia. A própria Torre de Vigia tanto reconhece isso que decidiu fazer a sua própria tradução da Bíblia, que denominou Tradução do Novo Mundo da Bíblia Sagrada. Essa tradução, no entanto, tem enfrentado ferrenhas críticas, em grande parte por reformular grande quantidade de textos de modo a negar a Trindade, que é uma doutrina básica de quase todas as outras denominações cristãs. Independente de quem esteja certo quanto a essa questão, o que fica de fato provado é que um lado ou outro está torcendo as Escrituras com o fim de apoiar crenças preconcebidas.
Tendo isso em mente, fica claro o quanto se faz necessário seguir a exortação do apóstolo João sobre a quem cabe de fato jugar se esta ou aquela informação tem procedência cristã ou é (não obstante o que se diga) meramente fruto da apostasia dos tempos modernos.
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