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Perspectiva

Como visto, todas as medidas adotadas apenas visam equilibrar as finanças e conter a evasão de Testemunhas. Os verdadeiros motivos para a desaceleração do crescimento foram praticamente ignorados até agora.

É absolutamente certo que o Corpo Governante sabe que não pode mais esconder o passado da religião, tal qual fizeram lideranças que o antecederam. Também sabe que cada vez mais pessoas do público têm se informado sobre as doutrinas atuais bem incômodas, como o ostracismo imposto a ex-integrantes, a indefensável data de 1914 e a política de não transfusão de sangue; e ainda, com bem mais frequência, a mídia acusa a religião das Testemunhas de acobertarem casos de pedofilia, o que a coloca no mesmo patamar de outras religiões tão condenadas por suas revistas.

Esses problemas não serão jamais resolvidos, a menos que o Corpo Governante confesse francamente que 1914 foi um grande erro, bem como também seja franco em seus livros para os iniciantes sobre o que realmente significa ser Testemunha de Jeová  É verdade que, sem 1914, a religião não terá base para afirmar que é a escolhida de Jeová para representá-Lo na terra, bem como, caso seja franca nos livros para iniciantes, muitos poderão não aceitar ingressar na religião; porém, esse é o sacrifício que se apresenta.

É claro que, sem a autoridade que lhe garante a data de 1914, não será fácil se impor perante os fiéis, mas é exatamente esse o caminho para uma comunidade essencialmente cristã, pois Jesus Cristo, quando proibiu a seus discípulos de serem chamados líderes, uma vez que ele era seu líder, descartou qualquer possibilidade de que pessoas dentre seus seguidores se impusessem sobre outros tais quais ditadores, com prerrogativas de legislar, julgar e executar (Mateus 23: 8-12). Isso, porém, é bem diferente da realidade das Testemunhas de Jeová, e refazer o estilo administrativo da religião não será fácil, e ainda que isso aconteça, será a um custo muito elevado, uma vez que, para seus líderes, significa admitir erros e rever conceitos que lhes são tão caros.

Para mim não há dúvidas de que o Corpo Governante se reconhece estar numa situação demasiadamente desconfortável. Talvez nenhum de seus membros tenha dúvidas de que pertence à única religião verdadeira, mas essa certeza está sendo submetida a severos testes há várias décadas, desde que nasceram. Todos eles sabem dos fracassos proféticos de seus antecessores, bem como eles mesmos, em maior ou menor grau, devem ter esperado o fim em 1975, bem como pregaram, com mais ou menos certeza, que este viria antes que morresse a geração de 14. Agora está nas mãos deles as esperanças de milhões, uma responsabilidade que, muito provavelmente, nenhum deles individualmente aceitaria.

Que fazer então? A julgar pelo passado, as mudanças de conceitos só virão quando alguma ideia fundamental ficar publicamente indefensável. Foi assim com todas as mudanças de conceitos que se sucederam a todos os fracassos proféticos da religião, todos eles requerendo uma nova explicação que servisse de fundamento até ser, esta própria, também rejeitada em prol de outra.

Para mim, tomar consciência de que é exatamente assim foi demasiadamente doloroso. Para os membros do Corpo, que não ignoram absolutamente nada desses fatos, o embaraço é amenizado pelo conceito de que Deus sempre usou pessoas imperfeitas para guiar seu povo; como exemplo, citam o caso de Moisés, que liderou por quarenta anos a nação de Israel. Embora fosse imperfeito e cometesse erros, Deus sempre o manteve como líder, inclusive exterminando aqueles que se insurgia contra sua autoridade divinamente constituída. Para um grupo de pessoas que acreditam ocuparem uma posição de liderança estabelecida por Deus, pode não haver nada de errado em presumir que, assim como Deus guiou Moisés e garantiu a sua posição, Deus também guia o Corpo Governante e garantirá que ele se mantenha como autoridade espiritual, ainda que sejam muitos os desafios. Porém, diferentemente de Moisés, que foi promovido a líder diretamente por Deus, e com toda uma nação por testemunha, a posição de liderança que ocupa o Corpo Governante tem como única testemunha um histórico de mais de cem anos de fracassos proféticos, que a nenhum líder causa orgulho, mas antes é motivo de vergonha, como evidencia o fato de não publicarem e nem mais traduzirem nenhum dos livros antigos.

Em contrapartida, ao passo que procura esconder seu histórico, a organização Torre de Vigia, desde a sua fundação, tem exposto com veemência os grandes erros de todas as outras religiões, às quais chama pelo nome bíblico de Babilônia, a Grande (Apocalipse 17 e 18). Convicta de que todas elas, tais quais religiões falsas, serão extintas por Deus pouco antes da volta de Cristo, muitos artigos têm sido escrito com o objetivo de fazer que as religiões caiam no descrédito geral. Uma série de artigos com esse propósito foi escrita em 1989 e publicada na revista Despertai!. Intitulada “O Futuro da Religião, Tendo em Vista Seu Passado”, ela se dividiu em 24 partes que se seguiram pelo ano inteiro. Todas as grandes religiões foram examinadas, as pagãs e as cristãs; passo a passo, a série procurou mostrar que todas as religiões fracassaram em trazer a felicidade para seus membros, bem como também muitas delas cometeram atrocidades, apoiaram guerras, proclamaram o amor e união entre as pessoas, mas trouxeram ódio e separação. Dito isso, a conclusão dos artigos é enfática: em resultado do seu passado desastroso, todas as religiões falsas merecem e devem ser extintas por Deus.

Mas pelo que se viu por todo este livro, a organização Torre de Vigia jamais possuiu condição moral para assumir tal posição condenatória. Quando esteve na terra, Jesus Cristo falou com franqueza a respeito de quem procura corrigir outros antes de corrigir a si mesmo. Comparando esses a alguém cuja visão é prejudicada por uma trave, mas que procura fazer outros enxergar melhor, ele disse com firmeza:

Hipócrita! Tire primeiro a trave do seu próprio olho e depois verá claramente como tirar o cisco do olho do seu irmão (Mateus 7: 5).

É verdade que muitas religiões são vítimas de seu passado; e a religião das Testemunhas de Jeová infelizmente não é uma exceção. O que isso significa para seu futuro? Será ela extinta? Muito provavelmente não, pois mesmo por condutas piores outras religiões não desapareceram, algumas delas milenares.

Mas não há dúvida de que um elevado tributo será cobrado, a credibilidade continuará em queda à medida que mais erros forem expostos; aos seus líderes, apresenta-se a urgente necessidade de se revestir de candura e admitir que são tão erráticos quanto aqueles de quem se propõem servir de guias. E um sincero pedido de perdão aos fiéis poderia inclusive ser um ponto de partida. Sobre isso, algumas palavras já foram ditas sobre outras igrejas que se viram forçadas a isso.

Tendo por destaque a igreja Católica, a revista A Sentinela escreveu o seguinte:

Quando o papa pede perdão 

Entre 1980 e 1996, João Paulo II ‘admitiu os erros históricos da Igreja ou pediu perdão’ pelo menos 94 vezes, diz o comentarista sobre assuntos relacionados com o Vaticano, Luigi Accattoli, no seu livro Quando il papa chiede perdono (Quando o papa pede perdão). De acordo com Accattoli, “na Igreja Católica, somente o papa pode corretamente fazer um mea-culpa”. E ele tem feito isso, referindo-se às páginas mais controvertidas da história católica — as Cruzadas, as guerras, o apoio dado a ditaduras, as divisões nas igrejas, o anti-semitismo, as Inquisições, a Máfia e o racismo. Num memorando enviado em 1994 aos cardeais (que alguns consideram ser o documento mais importante do pontificado), João Paulo II propôs “uma confissão geral e milenar de pecados”.

Diversos prelados têm seguido o exemplo do papa. Em dezembro de 1994, o jornal italiano Il Giornale relatou: “Muitos bispos americanos apareceram na televisão e pediram publicamente perdão.” Perdão de quê? De subestimar o problema com sacerdotes pedófilos, para o detrimento de muitas vítimas jovens. Em janeiro de 1995, o jornal La Repubblica noticiou “um gesto sem precedentes na história do catolicismo contemporâneo” — tratou-se do problema do silêncio do Papa Pio XII relacionado com o Holocausto. Em janeiro de 1995, o mesmo jornal noticiou que o episcopado alemão pediu perdão dos “muitos erros” dos católicos-romanos que apoiaram os crimes dos nazistas. Diversas Igrejas protestantes também se submeteram à autocrítica (A Sentinela de 1º de março de 1998, páginas 3,4).

Poderia isso ser uma rara ocasião em que essa revista publica uma matéria favorável a outras religiões; mas esse não foi caso. No artigo seguinte, depois de apresentar evidências de que as igrejas de fato estão mais interessadas é em melhorar a imagem delas perante a opinião pública, os autores continuam:

Esse comportamento nos faz lembrar Saul, o primeiro rei de Israel. (1 Samuel 15:1-12) Ele cometeu um grave erro, e quando isto foi exposto, primeiro tentou justificar-se — desculpar-se pelo seu erro — a Samuel, profeta fiel de Deus. (1 Samuel 15:13-21) Por fim, o rei teve de admitir a Samuel: “Pequei; pois infringi a ordem de Jeová.” (1 Samuel 15:24, 25) Deveras, ele admitiu seu erro. Mas as suas próximas palavras a Samuel revelaram o que mais o preocupava: “Pequei. Agora, por favor, honra-me diante dos anciãos do meu povo e diante de Israel.” (1 Samuel 15:30) Evidentemente, Saul estava mais preocupado com a sua reputação em Israel do que com ser reconciliado com Deus. Esta atitude não resultou em Deus perdoar a Saul. Acha você que uma atitude similar resultará em Deus perdoar as igrejas? (revista supracitada, página 6).

Não me é possível saber se Deus perdoará as igrejas, mas o Corpo Governante aparentemente já tem uma resposta. Quanto a ele próprio, em relação aos seus erros e os de seus antecessores, comporta-se como se nada houvesse que pedir perdão – e assim o faz porque tem consciência que tais são desconhecidos das Testemunhas, não porque não pesquisam, mas exatamente pelas razões apresentadas por todo este livro. Mas agir assim, ao contrário do que talvez imagine, não eliminará o problema, assim como enterrar a cabeça num buraco não afasta qualquer ameaça à segurança pessoal.

Uma confissão de erros seguida de um sincero pedido de perdão também abriria a porta para possíveis mudanças administrativas, que poderiam diminuir em muito a responsabilidade de lideranças futuras. Para começar, olhar-se-ia para o passado com claras intenções de verificar quais foram os maiores erros cometidos, os quais são as razões dos atuais apuros; e não é difícil perceber que muitos dos apuros de que passa a religião é em resultado de que, por mais de um século, seus líderes fizeram muito pouco caso de alertas externos. Seguros de que tinham a orientação de Deus em tudo, postaram-se com arrogância em posição elevada, fizeram afirmações absurdas e convenceram-se de que Deus as cumpriria para glória pessoal de cada um deles. Mas tal não aconteceu; antes, fez-se veraz as concisas palavras de Paulo:

Não se enganem: de Deus não se zomba. Pois o que a pessoa semear, isso também colherá (Gálatas 6:7)

Independente de que atitude venha a ter a liderança das Testemunhas de Jeová, o passado delas é uma lição para cada um de nós, inclusive para cada um dos integrantes do Corpo Governante. Que responsabilidade pessoal tem cada um deles diante disso? Creio que as palavras do profeta Ezequiel são agora oportunas:

O filho não levará a culpa pelo erro do pai, e o pai não levará a culpa pelo erro do filho. A justiça daquele que é justo será contada somente a favor dele mesmo, e a maldade daquele que é mau será contada somente contra ele mesmo (Ezequiel 18: 20).

Tendo por base palavras como essas, não creio que os membros do Corpo Governante serão divinamente responsabilizados pelos erros dos fundadores da religião. Nem creio que a parcela de culpa deles seja excessivamente maior que a da Testemunha comum; embora esteja em suas mãos uma grande responsabilidade, é preciso lembrar que somos todos humanos erráticos, cegos por natureza; é assim agora, foi assim para Russell e Rutherford, bem como foi também para os primeiros seguidores de Cristo lá no primeiro século. Com menor ou maior grau, temos cada um nossos temores, nossas incertezas, nossos desejos, e muitos de nós podemos nos apegar a qualquer coisa que nos garanta um mínimo de segurança emocional e espiritual. E cada membro do Corpo Governante também um dia se sentiu atraído pela fé de seus pais e a adotou sem questionar, tal qual fizeram muitos outros seguidores pelo mundo inteiro. Com esse ponto de vista, se nos consideramos vítimas da religião, são eles também vítimas, ainda que isso não reconheça; e como tal, assim como nós, cada um deles (como indivíduos, não como grupo) prestará contas de si mesmo a Deus (Romanos 14: 12).



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