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Silêncio e lágrimas

É obvio que o leitor sabe que nenhuma instituição religiosa pode declarar que casos de pedofilia jamais ocorrerão em seu meio. O Corpo Governante logicamente nunca declarou isso a respeito das Testemunhas de Jeová. Mas também é verdade que até a data em que escrevo isso, em maio de 2015, a autoridade religiosa nunca relatou um único caso de pedofilia envolvendo um dos seus fiéis.

Em suas publicações, no entanto, constam instruções sobre como os anciãos devem lidar com casos em que crianças (ou familiares dessas crianças) acusam um de seus integrantes de praticar pedofilia.

Nessas publicações, bem como em diversas cartas dirigidas exclusivamente aos anciãos, nota-se que a autoridade religiosa se apega com muita firmeza à norma bíblica de não aceitar como válida qualquer acusação que venha de uma única testemunha. Essas passagens bíblicas podem ser lidas a seguir:

Uma só testemunha não é suficiente para condenar alguém por causa de qualquer erro ou pecado que ele tenha cometido. A questão deve ficar estabelecida com base no depoimento de duas ou três testemunhas (Deuteronômio 19: 15).

Não aceite acusação contra um ancião, a não ser com base no testemunho de duas ou três pessoas (1 Timóteo 5:19).

Com o artigo “Consolo para o espírito abatido”, a revista A Sentinela de 1º de novembro de 1995 deu orientações sobre como os anciãos devem cuidar de assuntos envolvendo acusações de prática de pedofilia. Os três primeiros parágrafos trazem um fraseado característico da revista e logo dão indício do que se pretende tratar. Agora peço ao leitor que, ao ler, se coloque na situação de alguém que foi vítima de abusos (os colchetes são dos autores).

Consolo para o “espírito abatido”

O MUNDO de Satanás chegou ao ponto em que está “além de todo o senso moral”. (Efésios 4:19; 1 João 5:19) Adultério e fornicação viraram pandemia. Em muitos países, 50% ou mais dos casamentos acabam em divórcio. O homossexualismo é amplamente aceito. A violência sexual — estupro — está sempre nas notícias. A pornografia é uma indústria que rende bilhões de dólares. — Romanos 1:26, 27.

O abuso sexual de crianças é uma das perversões mais desprezíveis que existem; assim como a sabedoria do mundo de Satanás, é uma coisa “animalesca, demoníaca”. (Tiago 3:15) Só nos Estados Unidos, diz a revista Time, “mais de 400.000 casos de agressões sexuais constatáveis são denunciados às autoridades todo ano por professores e médicos”. Já adultas, muitas vítimas desse tipo de abuso ainda trazem marcas profundas. Marcas nada imaginárias! A Bíblia diz: “O espírito [inclinação mental, sentimentos e pensamentos íntimos] do homem pode agüentar a sua enfermidade; mas, quanto ao espírito abatido [ferido, aflito], quem o pode suportar?” — Provérbios 18:14.

As boas novas do Reino de Deus atraem pessoas de todo tipo, incluindo as ‘quebrantadas de coração’ e as que estão com o “espírito desanimado”. (Isaías 61:1-4) Não surpreende que muitos que estejam sofrendo de dores emocionais aceitem o convite: “Quem tem sede venha; quem quiser tome de graça a água da vida.” (Revelação [Apocalipse] 22:17) A congregação cristã pode ser o lugar em que essas pessoas encontram consolo. Para elas é uma alegria aprender que em breve o sofrimento será coisa do passado. (Isaías 65:17) Até lá, porém, talvez precisem ser ‘consoladas’ e ter suas feridas emocionais ‘pensadas’. Foi bem apropriado o conselho de Paulo aos cristãos: “Falai consoladoramente às almas deprimidas, amparai os fracos, sede longânimes para com todos.” — 1 Tessalonicenses 5: 14 (página 25).

Depois de ler isso, alguém que foi vítima de abuso logo se prepara para novas e calorosas palavras de consolo; afinal, não é a isso que se propõe o artigo? Os parágrafos seguintes passam a considerar que o leitor seja Testemunha e, provavelmente, vítima de abusos. Mas em qual estado de angústia ficará essa pessoa ao terminar de ler os próximos dois parágrafos?

“Recordações reprimidas”

Nos últimos anos tem havido casos de pessoas que ficam ‘quebrantadas de coração’ por razões que outras acham difícil entender. São adultos que, à base do que vem sendo chamado de “recordações reprimidas”, dizem ter sofrido abusos sexuais na infância. Alguns não se recordam de ter sido molestados até que, inesperadamente, vêm à tona lembranças repentinas e vívidas da infância, de estarem sendo abusados sexualmente por um adulto (ou adultos). Será que há casos, na congregação cristã [das Testemunhas de Jeová], de pessoas que têm lembranças perturbadoras desse tipo? Em alguns países, há; e esses cristãos dedicados talvez sintam muita aflição, raiva, sentimento de culpa, vergonha ou solidão. Como Davi, pode ser que se sintam isolados de Deus e clamem: “Por que, ó Jeová, ficas parado de longe? Por que ficas oculto em tempos de aflição?” — Salmo 10:1.

Muitos aspectos dessas “recordações” não são bem entendidos pelos profissionais da área de saúde mental. Ainda assim, essas “recordações” podem afetar a espiritualidade de cristãos dedicados. Por isso, recorremos com confiança à Palavra de Deus em busca de orientação para lidar com elas. A Bíblia dá “discernimento em todas as coisas”. (2 Timóteo 2:7; 3:16) E também ajuda a todos os envolvidos a confiar em Jeová, “o Pai de ternas misericórdias e o Deus de todo o consolo, que nos consola em toda a nossa tribulação”. — 2 Coríntios 1:3, 4 (páginas 25, 26)

“Recordações reprimidas” foi um assunto que esteve em voga na década de 90, mas que agora está caindo no descrédito; a respeito dessa questão, muitos especialistas acham difícil que alguma recordação dessa natureza possa surgir assim, sem nenhuma causa. Mas bem poucas ou nenhuma das vítimas de abuso sabia alguma coisa, quer contra quer a favor, de “recordações reprimidas”, de modo que, quando muito, só poderiam encarar o assunto como um inimigo invisível, inalcançável, e, visto dos dias de hoje, um mostro aparentemente criado para desestimular denúncias contra autoridades religiosas. Com base nesse “monstro”, o próximo subtítulo desenvolve-se cruel e insensível ante a dor das vítimas de abuso.

Aconteceu mesmo?

Existe muita controvérsia, no mundo, sobre o que são essas “recordações” e até que ponto representam o que realmente aconteceu. As Testemunhas de Jeová “não fazem parte do mundo” e não se envolvem nessa controvérsia. (João 17:16) Segundo algumas reportagens, há casos de “recordações” que têm fundamento. Por exemplo, depois de o perito de uma agência de seguros Frank Fitzpatrick ter-se “lembrado” de que havia sido molestado por certo sacerdote, quase cem outras vítimas alegaram ter sido abusadas sexualmente pelo mesmo sacerdote. O sacerdote, segundo consta, admitiu ter cometido os abusos.

Vale notar, contudo, que várias pessoas não conseguiram comprovar suas “recordações”. Algumas lembravam-se vividamente de uma pessoa específica estar abusando sexualmente delas ou de o abuso estar sendo cometido num determinado lugar. Mais tarde, porém, evidências legítimas em contrário deixaram claro que esses pormenores “recordados” não podiam ser verídicos (página 26).

Quando o Corpo Governante diz que “as Testemunhas de Jeová ‘não fazem parte do mundo’”, a questão envolvida é se elas dão ou não dão crédito àquele que trás atenção dos anciãos “recordações” de ter sido abusado. Como será visto adiante, independente do que diga, a organização religiosa escolhe sua posição.

O próximo subtítulo é “Como amparar essas pessoas”. Independente de se os abusos ocorreram ou não, “essas pessoas” precisam de atenção especializada – algo que a organização religiosa não dispõe e não tem nenhum arranjo organizado para encaminhar “essas pessoas” a uma instituição que possa oferecer a ajuda necessitada. Consciente de que a “vítima” precisa de ajuda, os autores do artigo então trazem a atenção para o ato prestativo do “bom samaritano”. Dizem que, ao invés de correr atrás dos bandidos, ele procurou tratar do ferido e depois levá-lo para uma hospedaria (Lucas 10). E o que exatamente isso quer dizer? Os autores não fazem nenhuma aplicação prática da lição. Não seria o caso de encaminhar a “vítima” a alguém que pudesse ajudá-la a se recuperar, tal como fez o “bom samaritano”? Para encerrar o subtítulo, é lembrado que tudo pode ser artimanha do Diabo, que, assim como este testou a fé de Jó, também pode estar testando a nossa fé. A conclusão requerida, ao que parece, é a seguinte: assim como Jó permaneceu leal a Deus, a “vítima” de abuso também deve fazer esforço para ser leal. Quanto consolo para alguém que foi sexualmente abusado! Além de aguentar a angústia emocional em decorrência dos abusos, ainda precisa empenhar-se pela fé, porque, do contrário, pode também passar a sentir o desprezo do próprio Deus e por fim ser executado no Armagedom.

O subtítulo seguinte é “Mantenha-se forte em sentido espiritual”. Todo o conteúdo é na verdade um requerimento para que a “vítima” se envolva profundamente na atividade religiosa, tal como leitura dos livros, orações e testemunho a outras pessoas, bem como nunca deixar de crer que, em breve, um paraíso será a cura de todos os males de agora.

O próximo subtítulo intitula-se: “E o suposto molestador?”. Nessa parte, os autores alertam contra os riscos envolvidos em procurar levar o caso aos tribunais. Lembram que se trata de “recordações reprimidas” e que, portanto, o acusado pode ser inocente. Relatam inclusive um caso em que uma filha, em razão de não ter conseguido provar na justiça que o pai lhe abusava, acabou por deixar a família com uma dívida de 100.000 dólares de custos processuais. Diante disso, uma opção razoável, de acordo com o artigo, é abandonar o caso, esquecer tudo, ainda que as acusações possam ter fundamentos. O Corpo Governante faz bem em recomendar cautela; no entanto, como essa cautela é recebida por alguém que foi de fato abusado? Não será isso um desestímulo a que essa vítima procure, por meios legais, uma possível reparação de danos?

Surpreendente, no entanto, são as diretrizes que determinam como os anciãos devem lidar com esses casos, quando alguém chega até eles e conta ter passado a se ‘recordar’ de ter sido abusado por determinada pessoa (presumivelmente Testemunha de Jeová).

O que os anciãos podem fazer?

Quando os anciãos são procurados por um membro da congregação que esteja tendo “recordações” repentinas e vívidas ou “recordações reprimidas” de algum abuso sexual que tenha sofrido, em geral dois deles ficam incumbidos de ajudá-lo. Com toda a bondade, esses anciãos devem incentivar a pessoa aflita a se concentrar, primeiro, em lidar com o sofrimento emocional. O nome de quaisquer molestadores de que essa pessoa se “lembre” devem ser mantidos em sigilo absoluto.

A tarefa primária dos anciãos é atuar como pastores. (Isaías 32:1, 2; 1 Pedro 5:2, 3) É bom que tomem o cuidado especial de ‘revestir-se das ternas afeições de compaixão, benignidade, humildade mental, brandura e longanimidade’. (Colossenses 3:12) É bom também que escutem os aflitos com muita bondade e os consolem com as Escrituras, cujas palavras podem restabelecer-lhes o ânimo. (Provérbios 12:18) Algumas pessoas que sofrem com dolorosas “recordações” são gratas a anciãos que as visitam regularmente ou que lhes telefonam para saber como estão passando. Esses contatos não precisam ser demorados, mas mostram que a organização de Jeová se importa com essas pessoas. Algo que pode ajudar a pessoa aflita a recobrar boa parcela de equilíbrio emocional é sentir que seus irmãos cristãos lhe querem bem.

E se a pessoa decidir fazer uma acusação formal? [isto é, procurar fazer que os anciãos julguem o acusado] Nesse caso, os dois anciãos poderão lembrar-lhe que, em harmonia com o princípio em Mateus 18:15, ela deverá conversar pessoalmente com o acusado sobre o assunto. Se não estiver em condições emocionais de confrontar o acusado, poderá telefonar-lhe ou enviar-lhe uma carta. Assim ele tem a oportunidade de defender-se da acusação, perante Jeová. E pode até apresentar evidências de que é impossível que tenha cometido o abuso de que é acusado. Ou talvez confesse o erro e possa haver uma reconciliação, o que seria muito positivo! Se ele confessar a culpa, os dois anciãos poderão tratar do assunto em conformidade com os princípios bíblicos [que eventualmente seria formar um tribunal religioso e julgá-lo, ainda que o resultado seja apenas a concessão de perdão ao acusado, caso este se mostre arrependido].

Se o acusado negar a culpa, os anciãos deverão explicar a quem fez a acusação que nada mais poderá ser feito em termos judicativos. E a congregação continuará a considerar o acusado como inocente. A Bíblia diz que é preciso haver duas ou três testemunhas para que alguma ação judicativa seja tomada. (2 Coríntios 13:1; 1 Timóteo 5:19) Mesmo que mais de uma pessoa se “lembre” de ter sido abusada sexualmente pelo mesmo indivíduo, a natureza dessas lembranças, se não há outras evidências, é incerta demais para servir de base para decisões judicativas. Isso não significa que essas “recordações” sejam encaradas como falsas (ou como verdadeiras). Simplesmente os princípios bíblicos precisam ser acatados ao se resolver um assunto judicativamente.

E se o acusado — embora negue a transgressão — for realmente culpado? Será que ele vai “se livrar dessa”? De jeito nenhum! A questão de ele ser ou não culpado pode ficar, com toda a segurança, nas mãos de Jeová. “Os pecados de alguns homens manifestam-se publicamente, conduzindo diretamente ao julgamento, mas, quanto a outros homens, os pecados deles também se tornam manifestos mais tarde.” (1 Timóteo 5:24; Romanos 12:19; 14:12) O livro de Provérbios diz: “A expectativa dos justos é alegria, mas a própria esperança dos iníquos perecerá.” “Quando morre um homem iníquo, perece a sua esperança.” (Provérbios 10:28; 11:7) Em última análise, Jeová Deus e Cristo Jesus proferirão com justiça a sentença eterna. — 1 Coríntios 4:5 (páginas 28, 29).

É exatamente essa a maneira adotada pelo Corpo Governante para tratar de casos de pedofilia envolvendo acusados dentre as Testemunhas. Mas algum leitor pode estar presumindo que o artigo considerado não trata especificamente de pedofilia, mas de “recordações reprimidas”. Mas em um livro secreto, com acesso restrito aos anciãos, essa norma é mantida para todos os casos de acusação em que há apenas uma testemunha (no caso específico, que é pedofilia, apenas a vítima e seu abusador). Veja a seguinte imagem (Pastoreiem o Rebanho de Deus, edição de 2010, página 72, 73):



Agora imagine a sensação de uma vítima de abuso ao descobrir que, mesmo depois de se requerer dela uma acareação com seu abusador, que, segundo se relata, às vezes ela é solicitada a descrever exatamente o que o abusador lhe fez, onde lhe tocou... mesmo depois de ser humilhada a esse ponto, a decisão dos anciãos é pela confidencialidade, nada de irem eles mesmos à polícia e requerer que esse órgão competente investigue o caso. A respeito dessa questão, o mesmo livro secreto diz o seguinte, à página 132:



Mas isso é muito diferente da atitude comumente esperada, que é comunicar às autoridades o quanto antes. Mas por que a própria vítima, ou a família da vítima, geralmente primeiro recorre aos anciãos e não à polícia? A razão talvez seja porque estes desejam assim seguir mais uma norma da religião, que é tentar resolver qualquer assunto pelo diálogo, pois, segundo explicação baseada na Bíblia, é vergonhoso irmão levar irmão aos tribunais (1 Coríntios 6:1-6). Todas essas normas, tanto a que requer duas ou três testemunhas, bem como esta citada por último, independente de se dizem exatamente o que o Corpo Governante acha que diz, isto é, se são abrangentes a esse ponto, são todas usadas com resultados benéficos tanto para o acusado de pedofilia bem como para a imagem da religião, cujo maior beneficiário é o Corpo Governante.

A meu ver, uma denúncia à polícia, feita pelos anciãos, mesmo que haja apenas uma testemunha, não constitui uma violação da norma bíblica. Pois quando a polícia recebe essa denúncia, independente de quem a faça e independente de quem seja o denunciado, a denúncia é apenas uma denúncia, que pode ser verdadeira ou falsa. Se uma investigação policial revela que as acusações procedem, os anciãos podem então executar a punição eclesiástica que for apropriada. Se as acusações se revelarem falsas, ou se não se puder comprovar nada, tem-se o ônus de se sair com a imagem arranhada, mas a outra opção (a adotada pela religião) é conservar no seio religioso um suspeito de pedofilia que, caso seja pedófilo de fato, talvez já tenha abusado de outras crianças e provavelmente continuará com a prática. Mas é justamente essa opção que tem servido de proteção à imagem da religião e nada indica que o Corpo Governante vá abrir mão da norma em tão pouco tempo. Como visto acima, a autoridade religiosa recomenda aos anciãos que nunca desaconselhe que a vítima procure a policia, mas, em muitos casos, talvez na maioria deles, trata-se de uma vítima em que o acusado é um parente próximo, um padrasto ou o próprio pai. Nessa situação, às vezes a própria mãe se recusa a acreditar que a filha ou o filho fala a verdade. Em casos como esse, a única em condição de recorrer à polícia é a própria vítima, e se ela for uma criança, isso é quase impossível (No caso das Testemunhas de Jeová, entra em cena outro fator, que é a extrema confiança de que são investidos os pastores; a respeito disso, veja um caso típico no depoimento abaixo).

“Ele era ancião, não podia estar fazendo nada errado.”

Ela era apenas uma menina de nove anos quando começou a ser abusada por um pastor Testemunha de Jeová que era também seu cunhado. Nordestina, pobre, recém-chegada a São Paulo, tudo isso vinha a somar-se aos abusos, que perduraram dos 09 aos 13 anos de idade.

Considerando que eram ainda os anos sessenta, o sexo era um tabu na família, de modo que ela viu-se sem reação diante das investidas de seu agressor. Ensinada a confiar nos mais velhos, e principalmente ensinada que as Testemunhas de Jeová eram pessoas de confiança, Dulci Rezende, ou “Duda”, como lhe chama uns amigos, só teve a mãe como alguém a quem pedir ajuda. Contou-lhe isso com a voz embargada, de um jeito que nem lembra mais as palavras, mas lembra-se bem como foi a reação de sua mãe. Segundo suas próprias palavras: “Minha mãe limitou-se a dizer que eu estava falando bobagem. Que ele era ancião, não podia estar fazendo nada errado”. E assim, restou-lhe deixar-se ser usada pelo pastor, que lhe atraía com doces e algumas moedas.

Quando tudo acabou, lá pelos 13 anos, que fez ela? Que rumo deu à sua vida?

“Quando tudo aquilo terminou, calei [...] guardei dentro de mim. Ficou escondidinho e toquei minha vida sempre com muitas atividades. Acho que isto me ajudou muito.”

Dulci Rezende foi Testemunha de Jeová até 1983, quando, à idade de 28 anos e casada, decidiu dissociar-se da religião e dedicar-se por inteira à vida profissional. Mas tempos depois, algo lhe trouxe de volta o assunto que há muito trancara dentro de si:

“Enfim, resolvi retomar o assunto quando os alertas contra os pedófilos começaram a povoar a mídia. Mesmo assim demorei a ter coragem de abrir meu coração. Hoje falo abertamente, até porque o fulano era Testemunha de Jeová. E eu não perderia jamais a oportunidade de testemunhar que a podridão está presente em um local que eles julgam puro.”


Diante dessa situação, o estado emocional da vítima é desolador. Uma criança geralmente nem entende o que se passa e, embora possa sofrer, muitas vezes encara os abusos como uma coisa natural. Mas na adolescência, quando se adquire a consciência do que é certo e errado, surgem as revoltas, o desejo suicida e, caso o segredo continue, a vítima, em alguns casos, acaba por se passar por desequilibrada, sendo que raramente surge a suspeita sobre qual a razão provável. Para uma vítima Testemunha, é adicionada a isso a ideia de ter cometido um pecado e, como ela ler que os fornicadores não herdarão o Reino, a situação é pior ainda. Além de estar sofrendo muito, ainda pode concluir que será punida por Deus por ter cometido fornicação.

Quando esses casos chegam aos anciãos, o Corpo Governante diz que a prioridade é tratar da condição emocional da vítima. Mas, como visto anteriormente, em hipótese alguma recomenda que a vítima seja cuidada por pessoas especializadas. O livro dos anciãos até chega a abordar o assunto, mas deixa a critério da vítima ou de seus familiares a decisão de escolher um tratamento especializado. Veja isso em mais um recorte do livro secreto, à página 55:




A última frase do parágrafo chama a atenção para uma das opções de tratamento, que é a terapia de grupo, onde as vítimas conversam em grupo sobre o que lhes aconteceu. Para esse caso, o texto alerta que, caso a vítima não mantenha a discrição, nomes de Testemunhas podem ser citados. Essa é uma possibilidade – e ser ela aqui mencionada deixa evidente qual é a preocupação do Corpo Governante. Caso a vítima seja alertada a não citar nomes, imagine-a diante do grupo a contar o seu caso. Ela pode querer não citar nomes, mas se perguntarem, ela talvez diga que não pode falar. Mas por que não pode falar? Ela está sendo ameaçada por alguém? Quem a está proibindo de falar? Seria apenas natural se ela se calasse em resultado de temer o seu abusador, mas nesse caso ela está se calando em benefício do Corpo Governante. Em conclusão, os anciãos até são orientados a não tentar impedir que a vítima procure a polícia, mas a realidade é que se deseja fazer o possível para que nomes sejam omitidos das autoridades – tudo em razão da imagem.

Em comprovação de que a preservação da imagem é algo de grande preocupação para o Corpo Governante, nota-se que, em 1997, no artigo “Abominemos o que é iniquo” (A Sentinela de 1º de janeiro, página 26-29), o assunto “pedofilia” até foi abordado, mas apenas se considerou a hipótese de que isso aconteça entre as Testemunhas, e a palavra “pedofilia” nem sequer foi citada. Em continuação deste assunto, veja abaixo um recorte do Wachtower Library 2013; ele retrata uma parte do índice intitulada “abuso de crianças”. As sentenças depois de “praticado por” alistam nominalmente religiões e religiosos, dentre elas as Testemunhas de Jeová. Isto se dá quando se faz referência à revista A Sentinela de 1º de janeiro de 1997. Mas note que “Testemunhas de Jeová” aparece apenas como “cristãos”.



Conforme foi visto à página 67, o nome “Testemunha de Jeová” foi adotado depois de se classificar como inadequados diversos outros, dentre eles o nome “cristão”; para este, a justificativa apresentada foi que ele já havia perdido seu sentido original. Agora, numa situação em que o contexto requeria o seu uso, o nome “Testemunha de Jeová” mostrou-se inconveniente – e essa atitude só se explica se se considerar a preservação da imagem como um fator preponderante.

Como o Corpo Governante tomou a decisão de apontar o dedo para outras religiões, enquanto faz silêncio sobre o que acontece em seu próprio quintal, as Testemunhas de Jeová, de modo geral, creem que a sua própria religião está isenta de culpa quanto a acobertamento de pedofilia em seu meio. Quanto a isso, estão muito enganadas.





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