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Sobre minhas frustradas tentativas de ter as assinaturas dos anciãos em minha carta-confissão

Quando os pastores Testemunhas de Jeová se reúnem para compor um tribunal religioso (ou “comissão judicativa”, para usar o termo oficial), requer-se deles que sigam rigorosamente as orientações que constam em manuais de instruções que constam nos dois livros mostrados abaixo, bem como em cartas que lhes envia a Torre de Vigia. É vedado à Testemunha comum ter qualquer acesso a esses livros.



Nas primeiras páginas desses livros costuma ter um aviso como mostrado abaixo:



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Apesar dessas restrições, esses livros ocasionalmente são apreendidos por autoridades judiciais, quando a religião passa por uma investigação. Nessas circunstâncias, a liderança vê-se impotente, sem nenhum poder para fazer valer o sigilo que decretaram aos livros (Talvez em razão dessa exposição, o aviso foi retirado das versões mais recentes do Pastoreeiem) . Apesar disso, nunca os liberaram para o acesso geral dos verdadeiros interessados: as Testemunhas de Jeová. Muitas delas nem sequer sabem que eles existem.

Eles funcionam mais ou menos como o nosso Código de Processo Civil/Penal. Contém o passo a passo de como proceder a uma investigação, como e quem deve compor o tribunal, como proceder durante o julgamento, como devem anunciar ao réu a decisão do tribunal, entre muito outras coisas. Mas visto que seu conteúdo é desconhecido da Testemunha comum, os juízes nem sempre se deixam guiar por ele, e muitos delas são condenadas, não exatamente pelos seus pecados, mas porque já não tinha o favor de um ou de alguns dos juízes. Todo tipo de erro ou abuso ainda é favorecido pelo fato de essas comissões ocorrerem a portas fechadas, sendo que nem mesmo se aceita que o réu seja acompanhado de um familiar ou advogado (a única exceção a isso é quando se trata de filhos menores ou mulheres cujo marido também é Testemunha de Jeová); além disso, deve-se evitar sempre que possível produzir provas escritas que de alguma forma possa ser usada pelo réu contra o tribunal ou a Torre de Vigia (o texto abaixo é do livro “Prestai Atenção a Vós Mesmos e a Todo o Rebanho”, edição de 1991, página 110).



Sendo dessa forma, fica evidente o quanto isso deve ser constrangedor para mulheres, uma vez que se trata de um tribunal composto apenas por homens. Considerando isso, e justamente com o fim de evitar constrangimento desnecessários, o livro citado anteriormente, à pagina 112, dar algumas orientações a respeito de como os anciãos devem fazer o interrogatório para identificar exatamente qual a gravidade dos pecados.



Quando diz que “a menos que isso seja absolutamente necessário para determinar, por exemplo, se o erro incorre em por-neí-a [seria a consumação do ato sexual, mas qualquer manipulação mútua dos genitais já é considerada por-neí-a, tal como masturbar um ao outro, sexo oral ou anal]”, eles dão total liberdade para os pastores fazer todo tipo de pergunta íntima com o fim de determinar se ocorreu por-neí-a.

Portanto, não é sem razão que muitas Testemunhas saíram dessas comissões com o emocional esmagado, independente da decisão do tribunal. E em razão do sigilo absoluto em que isso ocorre, elas não têm nenhuma condição de mostrar a outros o que se passa nessas comissões; já houve casos em que algumas levaram escondido algum equipamento de gravação, mas isso geralmente ocorre porque a Testemunha já procurou por outros meios se informar sobre esses julgamentos e deseja documentar possíveis abusos dos anciãos. Não foi, porém, o meu caso.

Quando entreguei aos anciãos a minha confissão escrita, nunca nem sequer imaginei que algum dia veria a necessidade de publicá-la. Em razão disso, entreguei-lhes a confissão sem pedir que confirmassem por assinaturas o recebimento. Quando então decidir escrever este livro e vir a necessidade de torná-la pública, senti que não podia apenas publicar o texto sem poder garantir que ele era autêntico. Então, com o objetivo de garantir a sua autenticidade, ainda em 2014 fiz contato com o corpo de anciãos e pedir que me fornecesse uma cópia assinada da confissão. De certo que presumi que não cederiam tão facilmente... como não cederam em hipótese alguma. 

Comprovante de correspondência: aqui e aqui.




No dia seguinte, pela manhã, João Carlos e Ivaldo Santiago, tendo dispensado o serviço gratuito dos correios, foram ao meu local de trabalho devolver a minha carta.

Santiago disse-me de imediato que não poderia fornecer documentos confidenciais e que a única maneira de eu me redimir era voltar a assistir às reuniões. Disse-lhes “Ok” e eles foram embora. Com essas palavras, Santiago revelou o que pensa a meu respeito; mas revelou também algo mais importante, isto é, o quanto ele ignora meu atual estado de espírito. Em outros tempos a palavra “redimir” entraria na minha consciência com a força de uma bala; mas então nesse dia, pronunciada por Santiago, ela me soou demasiadamente vazia.

A “conversa” não durou mais que quinze segundos e calculo que não se pronunciou mais que vinte palavras. Não se deram tempo para perguntar como eu estava de saúde, bem como não me foi dado tempo para oferecer a eles uma cadeira para sentar. Consideraram que conceder-nos essa licença equivalia a atenuar o peso da excomunhão – algo que eles não estavam dispostos a fazer.

Quase dois anos depois, neste abril de 2016, enviei outra carta com o mesmo objetivo. 

Comprovantes de correspondência: aqui e aqui




Então quatro dias depois, no dia 26, João Carlos e outro ancião (que não se dignou a me dizer o nome e nem eu perguntei) chegaram ao meu local de trabalho pedindo para ter uma conversa reservada. Convidei-os a entrar e aceitaram cadeiras que lhes ofereci para sentar.

Esse ancião logo desejou saber quais eram meus planos, se tinha intenções de voltar para a organização de Jeová. Quando lhes disse que não tinha mais interesse em considerar com eles esse assunto, uma vez que meu pedido para voltar foi “negado” sem que nenhuma justificativa me fosse dada, João Carlos, dirigindo-se mais ao colega do que a mim, explicou que a razão de não terem me aceito de volta foi que, por ocasião da visita que me fizeram, eu lhes dissera que havia voltado aos mesmos erros que me levaram a ser expulso.

Essa era a justificativa que esperei por uns quatro meses, pelo fim de 2012 até o começo de 2013, mas que, por aquela época, foi decidido que o silêncio seria a resposta mais apropriada. Infelizmente a justificativa dita por João Carlos distorcia muito os fatos, pois fazia parecer que eu havia voltado a ver pornografia com a mesma frequência que antes, bem como também considerava de valor a informação que lhes forneci, mas desconsiderava todo o mérito da própria confissão, como se isso fosse coisa que se fizesse à toa, sem nenhum sacrifício moral e emocional. Mas não achei necessário contestá-lo, uma vez que não tinha mais nenhum interesse em tratar disso com eles. Também não me pareceu que João Carlos disse isso por maldade, pois não é típico dele; apenas me veio à mente que essa resposta, assim bem generalizada, foi algo que disseram para si mesmos depois que deixaram a minha casa, lá no ano de 2012 – e muito provavelmente será a resposta fornecida a cada guadalupense que lhes questionarem sobre por que não fui aceito de volta à religião.

Diante das palavras de Joao Carlos, o seu colega ancião considerou que acabara de descobrir o verdadeiro culpado de eu não ter sido aceito de volta, pois abriu a Bíblia e me leu alguns versículos da Bíblia.

Busquem a Jeová enquanto ele pode ser achado. Chamem-no enquanto ele está perto. Deixem os maus o seu caminho, e os malfeitores os seus pensamentos; que eles voltem a Jeová, que terá misericórdia deles, ao nosso Deus, porque perdoará amplamente (Isaías 55: 6,7).

São palavras bem bonitas da Bíblia, mas o que se pedia de fato era que eu voltasse a ser Testemunha de Jeová. Nesse momento, enquanto ele enfatizava que Jeová é um Deus misericordioso, olhei fixamente para aqueles homens e senti pena. Como podiam estar ali me pedindo para voltar a ser Testemunha, nas atuais circunstâncias, enquanto eu esperava resposta de seus superiores a respeito de assuntos que eles eram propositadamente mantidos na ignorância?

Ante o meu silêncio respeitoso, o ancião, que se mostrava muito gentil e atencioso, considerou que precisava ler para mim outro versículo do livro de Isaías:

“Venham, pois, e resolvamos as questões entre nós”, diz Jeová. “Embora os seus pecados sejam como escarlate, serão tornados brancos como a neve; embora sejam vermelhos como pano carmesim, se tornarão como a lã.” (Isaías 1: 18)

Depois dessa insistência, voltei a lembrar-lhes que meu podido de retorno fora negado, mesmo depois de eu ter continuado a frequência às reuniões por quatro meses. Como resposta, ouvi do ancião que o problema foi eu ter parado de assistir às reuniões, disse-me que eu jamais devia ter feito isso, e que escrevesse não só uma, mas duas, três, ou quantas cartas fossem necessárias, até ser considerado qualificado para ser aceito como Testemunha de Jeová. Nesse momento, lembro-me das palavras de Jesus Cristo sobre ele vir ao mundo, não em busca de santos, mas de pecadores. Não perguntei ao ancião se os padrões da organização Torre de Vigia eram superiores aos de Jesus Cristo, mas os fatos deixam transparecer que isso é uma pergunta óbvia. Lembrei-me também da parábola do filho pródigo (Lucas 15: 11-32). Imagine que o pai, ao saber que seu filho estar ao portão implorando para ser aceito de volta, decide primeiro mandar verificar se o filho está bem de saúde, se está bem vestido e bem perfumado. Verificando que o filho não atende a esses requisitos, manda deixá-lo fora, até que, com seus próprios recursos, procure tratar da saúde e da higiene para então requerer – quantas vezes for preciso – ter de volta o amor do pai. Parece-lhe isso uma atitude cristã? Não, segundo conclui a parábola contada por Jesus Cristo.

Quando caiu em si, ele disse: Quantos empregados do meu pai têm fartura de pão, enquanto eu estou aqui morrendo de fome! Vou partir e voltar para a casa do meu pai e lhe dizer: Pai, pequei contra o céu e contra o senhor. Não sou mais digno de ser chamado seu filho. Trate-me como um dos seus empregados. Assim, levantou-se e foi ao encontro do seu pai. Enquanto ele ainda estava longe, seu pai o avistou e teve pena; então correu, e o abraçou e beijou ternamente. O filho lhe disse então: Pai, pequei contra o céu e contra o senhor. Não sou mais digno de ser chamado seu filho. Mas o pai disse aos seus escravos: Depressa! Tragam uma veste comprida, a melhor, e vistam-no com ela, e ponham-lhe um anel na mão e sandálias nos pés. Tragam também o bezerro gordo, abatam-no, e vamos comer e festejar, porque este meu filho estava morto e voltou a viver, estava perdido e foi achado. E começaram a festejar (Lucas 15: 17-24).

Mas isso não vinha ao caso na minha conversa inesperada com esses anciãos. Depois de sua leitura de versículos de Isaías, contornei o assunto e reafirmei o meu desejo de ter o documento assinado. O ancião pausadamente me explicou que “não é assim que a organização de Jeová trabalha”, que não existe isso; pergunta se por ocasião do meu batismo assinei algum documento. Diante da minha negativa, ele afirma que nosso batismo é um acordo em entre a pessoa e Deus, e com Deus não se assina documentos.

Depois de ouvir essas palavras, foi-me impossível não me lembrar da segunda pergunta do batismo; ela exige do batizando o reconhecimento de que, ao se apresentar para o batismo como Testemunha de Jeová, ele automaticamente aceita que está-se associando à organização Torre de Vigia, concedendo a ela (ainda que isso não compreenda) todo o direito de gerenciar sua vida, podendo ela inclusive negar-lhe a salvação por meio da desassociação. E era exatamente isso que estava acontecendo. Eu podia ter feito um acordo com Deus, assim como esse ancião se expressara, mas era a Torre de Vigia que havia decidido que eu não mais era digno de ter a salvação. Sobre isso, a leitura que ele fez do capítulo 55 de Isaías deixou bem clara. Ou eu volto a ser Testemunha de Jeová – enquanto há tempo, enquanto Deus mostra estar perto – ou chegará uma época em que todas as minhas esperanças de salvação serão extintas. Considerando isso, como é possível dizer que não houve um acordo entre eu e a Torre de Vigia? Esse acordo existiu, ainda que – providencialmente, para a segurança jurídica da organização – nada tenha sido posto por escrito.

O ancião disse também que eu não tinha nenhuma razão para me queixar da desassociação, pois toda Testemunha de Jeová só se batiza depois que aprende tudo o que é necessário saber para viver como Testemunha. Eu, porém, não lhe disse que o preceito que por fim resultou na minha excomunhão só foi adotado 12 anos depois do meu batismo. Foi, para todos os efeitos, uma alteração de contrato em que eu fui a parte prejudicada – coisa que é absolutamente justificada pelas tais revisões de doutrinas (veja o capitulo 1, páginas 26 e 27). Ter ele dito isso me faz suspeitar que essa é a justificativa que se dará a todos que questionarem as razões da minha desassociação. Isso mostra também o quanto as Testemunhas estão alheias às graves consequências das revisões de doutrinas. Como escrevo no capítulo 1, “quase somente depois de batizado é que o novo converso se tornará consciente disso – e talvez da maneira mais cruel possível”.

Já incomodado com a conversa, contornei os assuntos e voltei a fazer menção à carta que lhes enviei. Disse ao ancião que a assinatura dele no documento, ao contrário do que ele podia pensar, não consistia em ele ser responsável pela divulgação de um documento confidencial, pois era algo que ele estaria concedendo a mim, que era parte envolvida e já conhecia, por motivos óbvios, todo o teor do documento. Para meu espanto, ele concordou em assiná-lo e até procurou da bolsa, mas descobriu que não o tinha ali. Em despedida, deixou claro que logo me traria o documento assinado.

No dia seguinte, 27 de abril, nas proximidades de minha residência, encontrei várias Testemunhas que faziam o serviço de visita aos. Dentre elas vi destacar-se o ancião; este veio em direção a mim e me entregou um envelope.

Conferindo o documento, ali mesmo em sua presença, notei que não constavam as assinaturas. Mas como!? Questionei o porquê e ele explicou que havia mudado de ideia, disse que não participou da minha excomunhão, disse que não conhecia meu caso em detalhes e que, portanto, não podia assinar. Mesmo contrariado, evitei pronunciar quaisquer palavras em seguida, o que lhe permitiu dizer que eu sabia o que fazer; a qualquer tempo que quisesse voltar, a congregação estava pronta para me receber. Agradeci-lhe a gentileza das palavras e seguimos cada um para outros afazeres.

Com atitude como essas, fica garantido o total sigilo dos julgamentos que ocorrem a portas fechadas, tanto em Guadalupe, como por todo o Brasil e pelo mundo inteiro. No meu caso, os anciãos podem se portar como se nunca estiveram reunido comigo no Salão do Reino local, no final de setembro de 2011. Eu posso até afirmar isso, posso até dizer tudo o que ocorreu ali, mas eles não confirmam absolutamente nada.

Mas já não importa.

O documento que segue é a minha confissão escrita à comissão judicativa que decidiu por minha excomunhão. Segue inalterado, apenas com minha assinatura... e com evidentes erros de gramática.


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