Tornei-me Testemunha de Jeová em meados da década de 90, enquanto ainda morava na região de São Raimundo Nonato, uma cidade do sul do Piauí; mas há 15 anos que moro em Guadalupe, uma cidade que fica na região central do estado. Antes disso, depois de uma estadia por aqui em 1996, morei quatro anos na cidade vizinha de Floriano e, em 2001, mudei-me em definitivo para Guadalupe. Desde então, como ficará claro em páginas posteriores, meu relacionamento com a liderança local das Testemunhas de Jeová foi muito conturbado – e tudo culminou na minha desassociação no ano de 2011.
Mas o que exatamente me levou a ser desassociado?
Preliminarmente, preciso dizer que sou funcionário público municipal desde o ano de 2003 e desde então tenho exercido diversas funções em diversas repartições públicas do município. Assim, no ano de 2010, enquanto exercia função administrativa numa escola do município, fui acusado por algumas pré-adolescentes de assediá-las sexualmente. A acusação chegou primeiro à diretoria da escola, que contata o Conselho Tutelar, que contata o Ministério Público, que por sua vez me convoca a dar explicações. Ao mesmo tempo, a Prefeitura dá início a uma sindicância, mas não sem antes proceder ao meu afastamento da função. Diante de tudo isso, sempre tive certeza da minha inocência, mas foi grande a minha preocupação sobre como isso iria afetar a minha honra, bem como que efeito isso teria sobre meu relacionamento com as Testemunhas de Jeová da localidade. A respeito dessa questão, a literatura do Corpo Governante é firme em exigir um alto grau de moralidade por parte das Testemunhas, pois argumenta que o que quer que façam – seja o bem seja o mal – tudo refletirá sobre o nome de Jeová.
Com isso, com o firme propósito de manter as coisas às claras, assim que recebi a notificação da Prefeitura sobre o meu afastamento, forneci tão logo possível, em menos de meia hora, uma cópia à liderança local da congregação, que na época era composta por João Carlos e por Luiz Corrêa (um missionário carioca). Depois disse pessoalmente a Luiz Corrêa, o superior local, que os deixavam à vontade para darem por suspensas todas as minhas atividades na congregação. Isso é absolutamente natural, pois, por um lado, minimizaria qualquer repercussão negativa que meu caso pudesse ter no nome da congregação, e, por outro lado, me deixaria livre para cuidar exclusivamente da minha defesa junto aos órgãos competentes. Luiz Corrêa disse-me que aguardaria o resultado das investigações para então decidir o que fazer.
Como era esperado, a acusação que me envolvia tornou-se de conhecimento público, começando obviamente na escola, passando pelos bairros da cidade, e acabando por virar assunto no Orkut (rede social agora extinta). Logicamente também os meus companheiros de fé tomaram conhecimento do caso. A uns que me eram próximos cuidei de contar a minha versão dos fatos; assegurei a esses que eu era inocente e que esperava um julgamento favorável dos órgãos competentes. De outros, no entanto, senti de imediato um ar de desprezo, um julgamento com base no “ouvi dizer”. Isso deveria surpreender, uma vez que se trata de irmãos de fé, onde a confiança deveria ser mútua. Não me surpreendeu.
Enquanto isso, as investigações foram concluídas, tanto a do Ministério Público quanto a da Prefeitura. Quanto ao caso junto ao Ministério Público, atendi à convocação para depor; mas, em razão de serem poucas as chances de convencer a promotoria quanto à minha inocência, decidi fazer uso do direito constitucional de permanecer em silêncio. Em vista disso, ficou acertado, em presença de duas integrantes do Conselho Tutelar, que os pais das alunas seriam consultados se autorizariam, ou não, um inquérito policial e que, caso isso fosse autorizado, eu seria notificado. Desde então já se passaram seis anos e não recebi nenhuma notificação – o que me faz deduzir que um inquérito policial foi considerado desnecessário pelos próprios pais (uma certidão negativa emitida pelo Poder Judiciário do Estado do Piauí pode ser vista aqui).
Quanto à sindicância feita pela Prefeitura, as cinco mães das cinco alunas envolvidas foram convidadas a depor (uma comissão de sindicância não possui poder de convocação). Dessas cinco, apenas duas atenderam ao convite; uma disse que sua filha apenas ouviu comentários. A outra mãe disse que convidei sua filha à minha casa para pegar dinheiro e tomar um lanche. Com isso, restou à Prefeitura se servir do meu próprio depoimento para me dar uma suspensão de 20 dias com base no argumento de comportamento imprudente no local de trabalho.
Pelo tempo que durou o inquérito, a cada documento que eu recebia, cópia era fornecida à liderança da congregação; eles acompanharam cada passo e João Carlos pode confirmar que isso é verdade. Luiz Corrêa não mais está em atividade em Guadalupe e, pelo fato de eu estar incomunicável com os membros da congregação, não sei onde ele pode ser encontrado. O resultado do inquérito possibilitou a que eu pudesse voltar a exercer atividade no órgão público e isso serviu para certificar na mente de meus irmãos que as acusações contra mim não tinha procedência.
Isso foi em fins de setembro de 2010; em início de novembro, algo aconteceu que veio fazer ruir todos os meus esforços de recuperação moral.
Como foi dito anteriormente, Luiz Corrêa era o missionário das Testemunhas de Jeová em Guadalupe; esses missionários são mantidos pelo escritório do Corpo Governante, com sede no estado de São Paulo. O trabalho deles geralmente dura quatro anos em cada cidade, quando então ocorrem permutações. Assim, em início de novembro, Luiz Corrêa foi transferido para a vizinha cidade de Bertolínia-PI, ao passo que o missionário de Bertolínia, Ivaldo Santiago, veio para Guadalupe.
Alguns dias antes de Santiago chegar a Guadalupe, já circulava por cá boatos de que ele era tipo linha dura. Ele, ao chegar, não demorou a dar sinais de que os boatos tinham fundamentos. Ao ficar sabendo, por alguém da cidade, de certas acusações contra a minha pessoa, ele procurou João Carlos para melhor se informar. Da conversa que tiveram, ficou decidido que eu seria ouvido o quanto antes. Quando me foi dada a oportunidade de falar, de tudo lhe dei ciência, inclusive que a congregação foi bem informada sobre tudo e que até dispunha de cópias de todo o processo. Ao final, apesar de tudo que lhe disse, ele ficou admirado de que não me tenha sido dada nenhuma disciplina – mas que ainda não era tarde para tal: as minhas atividades na congregação seriam suspensas. Procurei chamar a sua atenção para o fato de que nada se provou contra a minha pessoa, pedi que lesse primeiro as cópias do processo. Depois ele ia ler, mas por hora estavam suspensos todos os meus trabalhos na congregação.
Dias após, quando por acaso o encontro, perguntei-lhe se havia lido o processo; ele lera o processo, mas a decisão por disciplina foi mantida. Com isso, mais uma vez eu me via de chifre perante meus irmãos; pois, sem saberem de absolutamente nada, eles apenas puderam especular sobre qual ou quais pecados eram a razão da disciplina. Meses antes eu havia dado a Luiz Corrêa a liberdade para suspender minhas atividades no Salão do Reino e ele não o fez. Caso ele as tivesse suspendido, a minha absolvição teria limpado a minha barra perante meus irmãos; agora viera a suspensão e o que eu tinha para dizer? Diante disso, apenas me deixei entregue à vergonha enquanto via meu nome ser embaralhado em teias de suspeita.
Em casa, entregue às lembranças dolorosas da ocasião, eu tinha bem poucas forças para orar a Deus; fazia, no entanto, indagações curiosas a respeito Dele. Eu havia aprendido nos livros do Corpo Governante que toda disciplina vem de Deus e que Ele só age no tempo certo. Como podia essa disciplina vir de Deus e como podia ser no tempo certo, não fui capaz de entender.
Nessas circunstâncias, quem tem problemas com a comida recorre à comida; quem tem problemas com bebida, à bebida; eu, que sempre tive problema com a pornografia, a ela recorri. E assim, em estado de letargia pornográfica combinada com um pouco de espiritualidade, passei os dias e os meses de quase um ano inteiro. Em meados de 2011 comecei um lento processo de recuperação espiritual e, à medida que minhas atividades na congregação iam sendo reativadas, o meu entusiasmo voltava, estando já pelo mês de agosto totalmente livre de pornografia.
Então em setembro meu computador ficou na casa de Santiago, e ele, tentado fazer alguns reparos, restaurou-o para alguns meses atrás e encontrou uma lista de sites pornográficos visitados. Foi o suficiente. Em seis dias reuniu-se um tribunal religioso e a decisão foi por excomunhão.
Esse tribunal religioso (comissão judicativa, como chamam as Testemunhas) era formado por Ivaldo Santiago, João Carlos e outro ancião que só conheço por “Júnior”, e que é de uma cidade próxima. Como este veio a fazer parte da comissão, não é difícil de explicar. Por volta dessa época, eu havia começado um namoro com uma moça da cidade dele; e foi justamente durante a primeira visita que fiz a essa cidade que Santiago, em Guadalupe, fez a descoberta que resultou em eu ser levado a julgamento. Sem paciência para esperar eu chegar, ele, de um telefonema, confrontou-me com meus pecados e, de um momento, fez fugir-me dos pés o chão de minha amada. Não tive escolha; como eu teria que confessar a ela mais cedo ou mais tarde, acabei por confessar logo. Não é preciso dizer que ela ficou arrasada; apesar disso, foi muito compreensiva e até alimentou a esperança de que nada demais pudesse acontecer. Eu, no entanto, não lhe dei certezas. Meu problema com a pornografia era antigo e, sabendo do estilo severo de Santiago, eu achava serem poucas as chances de escapar à excomunhão.
Mas excomunhão? Em razão de pornografia? Sim. Em 2006 o Corpo Governante incluiu o uso recorrente de pornografia como passível de excomunhão. A revista A Sentinela de 15 de julho daquele ano trazia, na seção Perguntas dos Leitores, a seguinte questão:
Pode uma pessoa ser desassociada [excomungada] da congregação cristã por praticar impureza, assim como acontece no caso de fornicação ou de conduta desenfreada?
E então segue já no primeiro parágrafo:
Sim, a pessoa pode ser expulsa da congregação se, sem arrependimento, pratica quer fornicação, quer certos graus de impureza, quer conduta desenfreada.
Então, depois de considerar o significado de vários termos gregos, a revista acaba por decidir que o uso recorrente de pornografia é passível de desassociação.
Consciente de que esse artigo seria levado em consideração pelos anciãos que me julgariam, reli-o várias vezes antes de defrontar-me com eles. É importante citar aqui que quando o artigo foi publicado, em 2006, revi meu histórico moral e notei-me em falta com Deus. Às Testemunhas é dito vez após vez nos livros distribuídos pela liderança que elas estão permanentemente sob vigilância por Deus. Que isso é verdade, nenhum cristão desconhece; no entanto, às Testemunhas é dito que se elas cometerem algum pecado, ainda que não continue praticando, não é suficiente declarar-se arrependido e confiar no perdão de Deus. Veja o que lemos em duas publicações do Corpo Governante:
Fale com os anciãos
"[Artigo dirigido aos jovens batizados] Se você é cristão, o assunto não acaba quando você conta [um pecado] aos pais. André diz: “Eu sabia que tinha de contar meu problema aos anciãos da congregação. Que alívio foi saber que eles estavam dispostos a me ajudar!” De fato, os jovens entre as Testemunhas de Jeová podem e devem procurar os anciãos congregacionais em busca de ajuda e encorajamento (
Despertai de 22 de janeiro de 1997, página 12
Na verdade, Jeová vê tudo o que fazemos. “Todas as coisas estão nuas e abertamente expostas aos olhos daquele com quem temos uma prestação de contas.” (Hebreus 4:13) Se Jeová conhece os fatos e nós vamos prestar contas a ele pelo que fazemos, por que aumentar nossa culpa por tentar esconder dos seus servos humanos [os anciãos] um pecado grave? — Veja também 2 Samuel 12:12. (
Mantenha-se no Amor de Deus, página 164)
Todo cristão pode aceitar facilmente que esconder de Deus nossos pecados é impossível, e que todos iremos prestar contas a ele. Mas o que é dito acima, com a citação de Hebreus 4:13, não é uma simples declaração de fatos. É uma insinuação de que, a menos que confessemos nossos pecados aos anciãos, estaremos em maus lençóis no dia de acerto de contas. Cada Testemunha entende isso em maior ou menor grau; posso afirmar com certeza que algumas mergulham em grave crise de depressão, tendo a convicção de que, a menos que delatem si mesmas, serão irremediavelmente executadas por Deus no dia de acerto de contas, evento ao qual o Corpo Governante chama de Armagedom.
Foi a esse estágio que cheguei após a publicação do artigo que incluía a pornografia entre os casos que são passíveis de excomunhão. Assim, em 2007, não suportando mais a angústia, cheguei-me ao missionário Luiz Corrêa e a João Carlos e me delatei a eles. Luiz Corrêa era um cristão cuja personalidade me era muito confortadora. Talvez isso tenha muito contribuído para que eu fizesse a confissão. Os anciãos citados ouviram-me com atenção e não deixaram transparecer nenhum sentimento, seja de ira ou pena. Seguindo o procedimento recomendado para esses casos pelo Corpo Governante, formou-se um tribunal religioso e a decisão foi pela não desassociação.
A decisão da comissão talvez se justifique pela confissão voluntária, mas desde então não se tocou mais no assunto e nenhuma ajuda espiritual me foi prestada. Com isso, derivei forças da própria confissão e procurei erguer-me com orações e tive razoável êxito; mas então, como já ficou dito em página anterior, o incidente de uma punição fora de tempo levou-me de volta, e sem nenhum controle, à pornografia.
E o resultado foi que, em fins de setembro de 2011, eu estava mais uma vez diante de um tribunal religioso. Desta vez, visto que o caso era de “descoberta” e não de “confissão”, eu podia dizer que estava em apuros. Mas como é sempre meu desejo fazer as coisas muito às claras, dois dias antes do julgamento entreguei aos anciãos uma confissão escrita de seis páginas; veja aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui.
Nela relatei meu histórico envolvendo a pornografia e deixei claro que a “descoberta” que levou à formação dessa comissão judicativa não podia ser chamada exatamente de “descoberta”, uma vez que houve a confissão voluntária de 2007 e que, a respeito dela, nenhuma providência foi tomada para encaminhar-me à recuperação. João Carlos, um dos anciãos que leria essa confissão, podia confirmar que isso era verdade, uma vez que ele havia presenciado a confissão de 2007 e trabalhou com Luiz Corrêa pelos quatro anos seguintes. Luiz Corrêa também podia ser convocado como testemunha, pois à época morava na cidade vizinha de Bertolínia. Eu não podia saber se esses homens seriam convidados a confirmar, ou negar, a minha confissão de 2007 e que, como eu afirmava, se era verdade que nenhuma ajuda me havia sido prestada. No entanto, um dia antes do julgamento fiquei sabendo através de terceiros que pessoas próximas a mim estavam sendo interrogadas; era do interesse dos anciãos locais reunir muito mais informações sobre mim, e não se pode dizer que o objetivo era me ajudar. Certamente não obtiveram quaisquer informações adicionais, mas isso salienta até onde certos homens estão dispostos a ir para apossar-se da intimidade de outros – sob o argumento de que Deus lhes concede esse poder.
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